Este ensaio foi escrito no verão de 2011, depois de Slavoj Žižek ter vestido uma t-shirt com a imagem de Lenin durante uma conversa com Amy Goodman e Julian Assange em Londres. O diálogo teve lugar no dia 2 de Julho de 2011 e foi organizado pelo Frontline Club. Gabriel Kuhn é um dos anarquistas da nova geração, que tem participado na renovação das ideias libertárias – ideias hoje difundidas por todo o globo e que, ao mesmo tempo que influenciam a maioria dos movimentos sociais em todos os continentes, se deparam também, cada vez mais, com as portas abertas nas mais diversas academias.
Por Gabriel Kuhn[1]
A “Hipótese Comunista” de Alain Badiou repousa sobre uma simples, ainda que importante, convicção: precisamos de ser capazes de imaginar algo diferente do capitalismo e a noção de comunismo torna-o possível. No entanto, a forma como Badiou entende o comunismo continua a ser bastante vaga, já que o define como “uma Ideia com uma função reguladora, mais do que um programa” [2]. Tal como o seu amigo e aliado comunista, Slavoj Žižek, Badiou considera que faliram todas as tentativas de implementar o comunismo durante o século XX. Enquanto Badiou fala, algo desalentado, sobre “os aparentes e, às vezes, sangrentos erros em que consistiram certos acontecimentos ligados à hipótese comunista”[3], Žižek corrige Stephen Sackur, apresentador de “HardTalk” da BBC, que afirma que o comunismo foi um “fracasso catastrófico”, preferindo referir- se a ele como um “fracasso total”[4]. Não obstante, Badiou e Žižek são as estrelas centrais de uma série de populares conferências comunistas que se iniciaram em 2009 com uma iniciativa em Londres, baseada, nos termos de Badiou, na convicção de que “a palavra ‘comunismo’ pode e deve adquirir hoje, mais uma vez, um valor positivo”. [5]
Exceptuando as correntes individualistas, primitivistas e anti-esquerdistas do anarquismo contemporâneo, quase tod@s os anarquist@s – e não só @s auto-denominad@s anarquistas comunistas – apoiariam o que ficou dito. O “comunismo” é uma ideia próxima à maioria dos corações anarquistas, que implica uma sociedade baseada na igualdade de direitos, justiça social e solidariedade, e não na competição. A perspectiva de Badiou parece particularmente atractiva para @s anarquistas pelas suas posições relativas tanto ao Estado como ao Partido, já que segundo ele. “A existência de um Estado coercivo, separado da sociedade civil, não deve ser apresentada no futuro como uma necessidade: um longo processo de reorganização baseado numa associação livre de produtores conduzirá à sua extinção” [6]. E mais, “…o princípio estatista acabou por estar corrompido em si mesmo e, a longo prazo, tornou-se ineficaz.”[7]. Quando Badiou argumenta que temos que ser capazes de assumir o desafio de pensar a política fora da sua sujeição ao Estado e fora do marco dos partidos” [8], Benjamin Noyos tem razão ao assinalar que “os anarquistas bem que poderiam responder que é isto exactamente o que o anarquismo está a fazer pelo menos desde há duzentos anos” [9], mas, no entanto, Badiou ou Žižek parecem não inclui-lo dentro dos seus interesses.
Algumas das afirmações mais impertinentes sobre o anarquismo na “Hipótese Comunista” alcançam o seu máximo com o seguinte comentário:
“Sabemos hoje que todas as políticas emancipadoras devem pôr fim ao modelo do partido, ou de múltiplos partidos, para passar a afirmar políticas “sem partido”, ainda que, ao mesmo tempo, sem cair na figura do anarquismo, o qual não foi mais do que crítica vã, a cópia ou a sombra dos partidos comunistas…”[10]
Esta caracterização do anarquismo é simplesmente falsa. Em vários países, houve activos movimentos anarquistas muito antes de que os partidos comunistas emergissem. Ideologicamente, também é infundada a concepção comum de o anarquismo é um irmão menor do comunismo. Antes do choque entre marxistas e bakuninistas no Congresso da Internacional dos Trabalhadores de 1872, o marxismo e o anarquismo tinham-se desenvolvido como duas correntes independentes dentro do movimento socialista.
A principal avaliação que Žižek faz do anarquismo ocorre durante uma entrevista com Doug Henwood, durante o ano de 2002 (o qual, infelizmente, celebra Žižek como alguém a quem não importa ser “politicamente correcto”; fazendo-se eco das diatribes conservadoras acerca do aparente limite à liberdade que implicaria a reivindicação de normas éticas para as relações sociais – que alguns destes esforços percam o seu objectivo não desacredita o princípio):
“Para mim, a tragédia do anarquismo reside no facto de acabares por ter uma sociedade secreta autoritária tentando alcançar metas anarquistas […] Tenho contactos em Inglaterra, França, Alemanha, entre outros – e sempre, por detrás da máscara de consenso, havia uma pessoa, aceite por regras não escritas, como mestre secreto. O totalitarismo era absoluto no sentido de que todas as pessoas pretendiam que eram iguais, mas todas lhe obedeciam” [11].
Eu não me atrevo a fazer comentários sobre a situação em Inglaterra e em França, mas no que diz respeito à Alemanha, gostaria de saber quem é esse “mestre secreto” do movimento anarquista. Talvez Žižek tenha amig@s com influência sobre as seitas secretas anarquistas – não seria surpreendente que @s tenha -, mas posso garantir que estes não têm qualquer papel no movimento anarquista alemão e muito menos têm qualquer influência relevante nele.
Žižek afirma também: “O segundo ponto é que tenho problemas pela forma como o anarquismo se apropria dos problemas actuais. Creio que precisamos mais de organização global. Creio de que a esquerda dever quebrar a equação de que mais organização global significa mais controlo totalitário” [12].
Desde quando é que o anarquismo significa recusa de organização global? @s anarquitas têm estado sempre envolvidos no que se chamou movimento “anti-globalização”, foram também os primeiros a assinalar que a globalização em si não constituía o problema, mas sim a globalização “corporativa” ou “neoliberal” – conceitos alternativos como “movimento alterglobalização” são o resultado destes debates.
Em segundo lugar, ainda que alguns anarquistas contemporâneos possam franzir o nariz ante a ideia de qualquer tipo de organização – a nível mundial ou não -, não é verdade que o movimento anarquista contemporâneo seja, no seu conjunto, anti-organizacional. De facto, o chamado plataformismo, um movimento anarco-comunista baseado na “Plataforma Organizativa da União Geral de Anarquistas”, proposta por Nestor Makhno e os seus companheiros no exílio de Paris na década de 20, teve um forte renascimento nos últimos anos. A rede Anarkismo – um verdadeiro exemplo de organização global de base – constitui um dos projectos anarquistas mais fortes do nosso tempo. Curiosamente, @s plataformistas são em muitos caso criticados como “leninistas” pel@s anarquistas anti-organização – talvez o anarquismo seja algo mais do que Žižek pensa. A ignorância de Žižek pode vir do simples facto de que para entender verdadeiramente os movimentos sociais devemos saber escutar. Como disse David Graeber, “podíamos imaginar alguém como Žižek, inclusive em sonhos, a escutar pacientemente o que se dizia nas assembleias de democracia directa de El Alto?” [13].
Dado o peso intelectual sobre o qual Badiou e Žižek construíram a sua reputação é curiosa a pouca profundidade da sua crítica ao anarquismo. Parece baseada em pequenos, mas antigos, preconceitos anti-anarquistas presentes no pensamento marxista. O comentário que citámos de Badiou é característico de alguém que um dia aprendeu que o anarquismo era uma ideologia charmosa, mas burguesa, e que nunca se preocupou em lhe deitar uma segunda olhadela. O marxismo considerou durante muito tempo o anarquismo como um movimento utópico sem teoria substancial. É verdade que o anarquismo não tem Marx nem análises económicas comparáveis, mas isto não significa que a teoria anarquista seja pobre – é, sobretudo, pobremente conhecida. Ao contrário da teoria marxista, com cem anos de desenvolvimento parcialmente patrocinado pelo Estado e pelas classes académicas bem estabelecidas, a teoria anarquista desenvolveu-se, em grande medida, fora da academia, no seio da reflexão colectiva sobre as forças sociais e os projectos em que estamos directamente envolvidos. Os exemplos vão desde os círculos de estudo anarco-sindicalistas e ao Movimento da Escola Moderna, do início do século XX, até à cultura anarquista do Zine e ao projecto Crimental. Resulta daqui, que a teoria anarquista é, em geral, mais tangível, adaptável e inspiradora do que a teoria marxista, ainda que necessitando de palavras impronunciáveis e de meditações abstractas. Mais importante, foram os anarquistas que desenvolveram ideias acerca das dinâmicas de poder, autoridade e sobre o Estado, das quais @s marxistas poderiam beneficiar. Até Badiou faz concessões, como esta:
“O marxismo, o movimento de trabalhadores, a democracia de massas, o leninismo, o partido do proletariado, o Estado socialista – todas as invenções do século XX – já não são úteis. No plano teórico merecem, sem dúvida, o maior estudo e consideração, mas no plano da política prática tornaram-se inviáveis” [14].
Em 1871, Mikhail Bakunin escreveu no “Deus e o Estado”: “É característica do privilégio e de qualquer posição privilegiada matar a mente e o coração dos homens. O homem privilegiado, seja politica ou economicamente, é um homem depravado na mente e no coração. Esta é uma lei social que não admite excepção e é tão aplicável a nações inteiras como a classes, corporações e indivíduos”[15]. Para evitar qualquer mal entendido: ainda que julgue que muit@s marxistas carecem de abertura no que se refere ao anarquismo, a intenção deste ensaio não consiste em atacar o marxismo. O sectarismo é um problema que atravessa toda a esquerda. As minhas simpatias pessoais foram sempre para o anarquismo mais do que para o marxismo, mas as minhas simpatias pessoais não são aqui muito importantes. Nunca me interessou condenar marxistas e não @s vejo como @s inevitáveis traidores d@s anarquistas. Às vezes @s marxistas aliam-se com @s anarquistas, outras vezes não. O mesmo acontece com cristãos, camponeses e condutores de autocarros. Claro que a história regista vários incidentes em que marxistas foram atraiçoados por anarquistas, mas há anarquistas que também foram atraiçoados por anarquistas. O importante é ter um objectivo em comum, chame-se abolição do sistema estatal ou solidariedade na luta.
Permitam-me voltar a Bakunin. Certamente que ele não é a figura histórica que Badiou ou Žižek abraçariam. Badiou ou Žižek parecem exclusivamente impressionados por figuras histórias que sustentaram o poder. Pessoas como Robespierre, Lenin, Stalin, Mao. Inclusive discutem a politica contemporânea em termos de Sarkozy, Chávez e Berlusconi, e não em termos dos movimentos pacifistas, ecologistas ou de justiça social (que Žižek não preste muita atenção ao movimento de libertação animal é pouco surpreendente dada a sua previsão de que @s vegetarian@s se vão converter em “degenerad@s”[16]). No entanto, a intenção deste artigo está longe de atacar Badiou ou Žižek. Eles têm dado contributos extremamente importante para o debate radical, estou seguro de que se esforçam genuinamente por um mundo melhor e é motivo de esperança ver pensador@s radicais nos orgãos de comunicação hegemónicos.
Ambos parecem ser companheiros agradáveis e o hiperactivo Žižek é particularmente difícil de odiar. Ainda que o sentido de humor de Žižek possa ser tão problemático com o seu fascínio pelos homens poderosos. Não é preciso ser “demasiado sensível”, “draconiano” ou “moralista” para discordar com as referências constantes a pessoas que presidiam a governos que mataram, torturaram e prenderam milhões de pessoas, sobretudo quando se está a falar de “conceber a ideia do comunismo como um movimento real” (Žižek) [17]e de “marcar o começo da terceira era da existência da Ideia” (Badiou) [18]. Isto também se aplica ao desejo de Žižek de enviar as pessoas que gritam slogans anti-governamentais para o Gulag[19]. Conheço essas pessoas, talvez isso o torne menos divertido.
Durante um acalorado debate, depois da odiosamente intitulada “Resistir é Render-se” crítica de Žižek ao texto ‘Infinitely Demanding’ de Simon Critchley, na London Review of Books[20], Critchley não se conseguiu conter na sua crítica a Žižek:
“Como Carl Schmidt nos recorda – e não devemos esquecer que este jurista fascista era um grande admirador de Lenin – existem duas grandes tradições anti-parlamentárias, à esquerda não liberal: autoritarismo e anarquismo. Se Žižek me ataca com a característica violência leninista por pertencer a esta última, é evidente qual a facção que apoia.[…] Para Žižek, tudo isto é irrelevante; estas formas de resistência [grupos da sociedade civil, movimentos indígenas, movimentos alter-globalização e anti-guerra] são simplesmente “entrega”, rendição. Mostra uma nostalgia viril pela ditadura, pela violência política e pela crueldade” [21].
Com toda a simpatia que sinto por Žižek é difícil defendê-lo destas acusações.
No entanto, permitam-me voltar ao argumento de que necessitamos dum conceito que mantenha viva a ideia de algo para além do capitalismo. Eu partilho desta iniciativa, de todo o coração, ainda que em momentos pós-modernos as objecções sejam óbvias: um conceito “alinhado” fomenta políticas identitárias, apodera-se das diferenças, reclama hegemonia e limita as opções tácticas. Percebo estas objecções e há bons motivos para as defender. Mas uma força “diversa” pode converter-se numa força difusa e, portanto, frágil. O princípio “divide e conquistarás” é ainda a pedra angular das políticas autoritárias. Ademais, não basta dizer que uma força específica está ligada a outras centenas de forças – esta deve-se articular com elas. E se estas ligações concretas existem, então porque não dar à rede uma designação em comum. Uma designação em comum possui duas vantagens, imperativas para as políticas de massas: as pessoas sentem-se parte de uma força comum e são capazes de fazer pressão colectiva sobre o inimigo. Se não tens uma designação em comum, não tens um movimento em comum, pelo menos na opinião pública – e estar na opinião pública é essencial se desejas potenciar uma massa crítica que torne possíveis mudanças estruturais.
A pergunta que se coloca aqui é se a designação “anarquismo” não seria uma designação mais prometedora do que “comunismo”. Esta é uma questão estratégica. Favorecer a designação “anarquismo” não significa necessariamente que haja algo incorrecto com a designação “comunismo”, De facto, poderíamos pensar que o verdadeiro comunismo equivale ao verdadeiro anarquismo. Sem dúvida, julgo que a designação “anarquismo” tem vantagens sobre a designação “comunismo”, enquanto significante para o Outro além do capitalismo. Especialmente agora, quando a maioria das pessoas, tal como Badiou e Žižek, associam o “comunismo” mais à tradição marxista do que à anarquista.
- O anarquismo não tem uma história de totalitarismo, Gulag e execuções massivas.
- O anarquismo não se centra nas ideias de “grandes homens”. Isto não quer dizer que o anarquismo não tenha problemas de dominação masculina, estes são problemas reais. Mas os “grandes homens” do anarquismo (Bakunin, Kropotkin, etc.) têm muito menos influência sobre @s anarquistas contemporâne@s do que os seus parceiros marxistas. É difícil ser-se levado a sério como marxista se não se estudou Marx, Lenin e Mao. No entanto, muitos anarquistas contemporâneos nunca tocaram num livro de Bakunin, Kropotkin ou Malatesta. De facto, às vezes podia-se desejar um pouco mais de interesse histórico e de estudo. No entanto, em geral, a falta de respeito (pelos clássicos, NdE) é produtiva e contribui para a vitalidade do anarquismo.
- O mais importante: as ideias anarquistas constituem hoje o coração da maioria dos movimentos sociais. Ainda que as ideias marxistas continuem tendo um papel nos movimentos sociais, as suas trincheiras actuais parecem ser os partidos marxistas tradicionais e o mundo académico. @s activistas sociais autónom@s, na sua maioria, utilizem o termo ou não, aderem aos princípios anarquistas: anti-autoritarismo, organização horizontal, acção directa, tomada democrática das decisões. Há dez anos, David Graeber resumiu o credo dos “novos anarquistas” na ‘New Left Review deste modo: “Trata-se da criação e promoção de redes horizontais em vez de estruturas de cima para baixo como se fossem Estados, partidos ou corporações; redes baseadas nos princípios da descentralização e na democracia de consenso não hierárquica”[22]. Os valores centrais dos começos do século XX evocam o mesmo. Em 2005, Richard Day ofereceu um testemunho integral destas questões no seu livro “Gramsci Is Dead: Anarchist Currents in the Newest Social Movements”. Ainda é convincente a apreciação de Day, segundo a qual “uma orientação no sentido da acção directa e da construção de alternativas às formas estatais e corporativas abre novas possibilidades para a mudança social radical, que não podem ser imaginadas através dos paradigmas existentes”, e ainda por cima “oferece a melhor oportunidade que temos para nos defendermos das sociedades neoliberais de controlo”[23].
Richard Day pertence a uma nova geração de académic@s anarquistas que desafiam o predomínio marxista nas universidades. Iniciativas como as Redes de Estudos Anarquistas, que emergiram no Reino Unido e na América do Norte, livros como “Constituent Imagination: Militant Investigations, Collective Theorization” (AK Press, 2007) e “Contemporary Anarchist Studies: An Introductory Anthology of Anarchism in the Academy” (Routledge, 2009), e conferências como a anual Renewing the Anarchist Tradition (RAT), organizada pelo Institute for Anarchist Studies, contribuem para reduzir este défice. Ainda que estas incursões anarquistas no discurso académico devem ser bem vindas enquanto revigorantes do debate intelectual, também podem ser pouco sérias se não forem acompanhadas de uma crítica de fundo à instituição e do seu próprio papel nela. Como escreve Deric Shannon na sua excelente contribuição para os Contemporary Anarchist Studies:
“Não se deve ignorar o facto de que as carreiras académicas são às vezes construídas à margem das políticas radicais em geral e do anarquismo em particular. Isto não quer dizer que devamos abandonar os nossos empregos (os quais, apesar de tudo, nos permitem apresentar as ideias às novas gerações). No entanto, é importante reconhecermos os nossos interesses profissionais de maneira honesta e aberta. Mais uma vez o arrivismo academicista infectou um bom número de perspectivas emancipadoras. Se queremos evitar isto, é necessário abertura, honestidade e, o mais importante, reflexões sobre os nossos interesses e trabalho”.[24]
Cada académic@ anarquista deve também seguir o conselho de Shannon sobre “resistir ao arrivismo academicista, à institucionalização e à domesticação que outras perspectivas emancipadoras encontraram quando entraram na Academia”[25]. Shannon identifica os seguintes aspectos chave: “Encontra-me nas ruas. Fala aberta e reflexivamente sonre os teus próprios interesses. Fala com @s estudantes acerca dos constrangimentos institucionais. Resiste à rigidez ideológica. Escreve, publica e discute fora da Academia. Não desperdices energia”.[26]
Pode dizer-se que o marxismo académico, frequentemente, não cumpre estes pontos. Existe toda uma classe privilegiada de académic@s marxistas, um facto que não contribui para uma imagem pública mais positiva do marxismo e, portanto, do comunismo. Ao mesmo tempo, isto permite aos intelectuais marxistas serem acarinhados por pessoas que gostam de estar rodeadas de intelectuais, sejam marxistas ou não. Muitas pessoas aclamam Badiou e Žižek, não por estarem interessadas na “subjectividade como produto de uma interacção entre a singularidade de um mecanismo de verdade e uma representação da história” ou numa análise lacaniana dos filmes da Disney, mas sim porque Badiou e Žižek estão na moda. Ambos são celebrados da mesma maneira que o é uma exibição de arte sobre o Exército Vermelho ou uma loja vintage soviética. O “comunismo” ganhou valor de mercado porque o seu poder actual diminuiu, e de ameaçador transformou-se em exótico. Significa muito que a descrição de Žižek na New Republic como o “filósofo mais perigoso do Ocidente” não lhe tenha causado qualquer dano; pelo contrário, impulsionou a marca Žižek. O perigo radical-chique é muito diferente do perigo real. Já em 1994, a ruidosa banda de rock Killdozer teve um êxito incrível com o álbum Uncompromising War on Art Under the Dictatorship of the Proletariat, repleto de bocados de arte social realista e slogans comunistas da velha escola. Hoje, inclusive, Žižek ganha popularidade com as suas numerosas referências a Stalin, enquanto que Badiou alinhou com Mao por uns cinquenta anos.
Mas, na realidade, também o anarquismo foi domesticado em vários sentidos e tão pouco é entendido, necessariamente, como perigoso. A Chomsky foi permitido falar em HardTalk, a letra A desenhada com um círculo aparece nos bens de consumo, desde bombons até bolsas, e as feiras dos livros anarquistas dificilmente chamam a atenção das autoridades locais e da polícia. No entanto, a forte presença de anarquistas nos movimentos sociais faz a diferença… Žižek parece preferir as conferências marxistas do Partido Socialista dos Trabalhadores – pelo menos um fiel reflexo dos seus escritos sobre os movimentos sociais.
Claro que qualquer um pode argumentar que @s anarquistas estão equivocad@s e que a sua influência sobre os movimentos sociais é mais prejudicial do que benéfica. Žižek esboça alguns pontos de vista sobre este assunto:
“Estou-me a converter num céptico da lógica anti-estatal esquerdista. Não passa despercebido que esse discurso encontra eco também na direita. Mais ainda, não vejo sinais da chamada “desaparição do Estado”. Antes pelo contrário. Tomando os Estados Unidos como exemplo, devo confessar que 80 por cento das vezes, quando há um conflito entre a sociedade civil e o Estado, estou do lado do Estado. A maior parte das vezes o Estado deve intervir quando alguns grupos locais de direita querem proibir o ensino da evolução nas escolas, e assim sucessivamente. Creio que é muito importante, por isso, para a esquerda, influir e utilizar, e inclusivamente, talvez, aproveitar, quando for possível, os aparelhos de Estado. Isto, claro, não é suficiente pro si mesmo. De facto, penso que é necessário opormo-nos à linguagem das “linhas de fuga” e de auto-organização e tudo isso, com algo que é completamente tabu para a Esquerda de hoje – como o alho para o vampiro -, ou seja, a ideia de um Estado grande ou participando das grandes decisões colectivas”[27].
Seria demasiado fácil pôr de lado simplesmente estas reflexões. Nem sequer são ideias novas e, pelo seu lado, Noam Chomsky causou durante muito tempo indignação entre @s anarquistas com declarações como a seguinte:
“Muitos anarquistas consideram o Estado como a forma fundamental de opressão. Eu penso que isto é um erro. Entre as múltiplas instituições opressivas que existem, o Estado é a menos opressiva. No Estado, pelo menos na medida em que a sociedade for democrática […] temos alguma influência sobre o que acontece. Não temos influência cobre o que acontece numa corporação. As corporações são tiranias reais, Sempre que as sociedades são dominadas por tiranias privadas, que são a pior forma de opressão, as pessoas precisa de se defender de alguma maneira. O Estado providencia alguma forma de auto-defesa”[28].
No contexto escandinavo encontramo-nos perante a ironia de que as actividades de muit@s autoproclamad@s anarquistas se têm centrado, nos últimos anos, na defesa do Estado de bem-estar. Isto só para mostrar que os argumentos de Žižek não são argumentos necessariamente contra o anarquismo, apenas contra a imediata e universal abolição do Estado – a qual nem todos @s anarquistas defendem, especialmente se o Estado for substituído pelo Darwinismo Social e não por comunidades igualitárias. No entanto, não parece ser necessário gritar por um “Estado grande” – o Estado pode ser pequeno, pode focalizar-se na justiça social e não na protecção das riquezas da classe governante.
A eventual meta anarquista – e comunista – continua a ser superar o Estado. O que, no entanto, só pode acontecer através de um forte movimento colectivo unificado sob uma designação comum. Por isso, parece-me lamentável que o anarquismo seja ainda, frequentemente, “ a política que não ousa dizer o seu nome”[29]. Na verdade, continua a haver um conjunto vasto de razões que levam as pessoas a quererem desfazer-se de todas as tradições políticas e introduzir um novo termo para a sua política revolucionária. De nenhuma maneira me oponho a isto. No entanto, enquanto não virmos nenhuma designação nova e prometedora emergir, poderíamos dar uma oportunidade ao anarquismo. Há muito pouco a perder.
NOTAS:
[1]Gabriel Kuhn, nasceu na Áustria e vive na Suécia. Anarquista, integra vários movimentos sociais. É doutorado em filosofia, com a especialidade de postestruturalismo, e tem publicados vários livros na editorial Unrast (em alemão) e PM Press (inglês) e textos em várias revistas e na sua própria editora (Alpine Anarchist Productions). Em 2010 teve que cancelar uma série de conferências nos Estados Unidos por estar incluído na lista de No Fly.
[2] Alain Badiou, “The Communist Hypothesis”, The New Left Review 49, January-February 2008.
[3] Alain Badiou, “The Communist Hypothesis”, The New Left Review 49, January-February 2008.
[4] Slavoj Žižek on HARDtalk, BBC, November 24, 2009.
[5] Badiou, The Communist Hypothesis, p. 37.
[6] Badiou, The Communist Hypothesis, p. 37.
[7]ibid.
[8] Alain Badiou, Polemics, London/New York 2006, p. 270.
[9]Benjamin Noys, “Through a Glass Darkly: Alain Badiou’s Critique of Anarchism”, Anarchist Studies, vol. 16, no. 2, 2008.
[10]Badiou, The Communist Hypothesis, p. 155.
[11]“I am a Fighting Atheist: Interview with Slavoj Žižek”, Bad Subjects, Issue 59, February 2002.
[12]ibid.
[13]Graeber, “Referendum on Žižek?”, Open Letter, December 2007.
[14] Alain Badiou, “The Communist Hypothesis”.
[15] Mikhail Bakunin, God and the State, Mineola, NY 1970, p. 31.
[16] Žižek!, documentary film, directed by Astra Taylor, USA/Canada 2005.
[17] “The Idea of Communism”, panel discussion at marxism 2010, London, July 4, 2010.
[18] Alain Badiou, The Communist Hypothesis, p. 260.
[19] Žižek!, documentary film.
[20]Slavoj Žižek, “Resistance Is Surrender”, London Review of Books, No. 22, Vol. 29, November 15, 2007.
[21]Simon Critchley, “Resistance Is Utile”, Harper’s Review, May 2008.
[22] David Graeber, “The New Anarchists”, New Left Review 13, January-February 2012.
[23] Richard J.F. Day, Gramsci Is Dead: Anarchist Currents in the Newest Social Movements, London/Ann Arbor, MI/Toronto 2005, p. 18.
[24] Deric Shannon, “As Beautiful as a Brick Through a Bank Window: Anarchy, the Academy, and Resisting Domestication”, in Contemporary Anarchist Studies: An Introductory Anthology of Anarchism in the Academy, Milton Park/New York 2009, p. 185.
[25] ibid., p. 184.
[26] ibid., p. 183-188.
[27] “Divine Violence and Liberated Territories: Soft Targets talks with Slavoj Žižek”, March 14, 2007.
[28] Theory and Practice: Conversations with Noam Chomsky and Howard Zinn, DVD, Oakland 2010.
[29] Benjamin Noys, “Through a Glass Darkly: Alain Badiou’s Critique of Anarchism”.
Tradução do Portal Anarquista, a partir da tradução em castelhano de Iván Darío Ávila Gaitán, politólogo e investigador da Universidade Nacional da Colômbia.
através de: http://www.alasbarricadas.org/noticias/node/36888
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