O ANARQUISMO NA REVOLUÇÃO RUSSA, por Daniel Guérin


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Na continuação da divulgação de artigos e textos sobre a revolução russa, que agora comemora 100 anos, iniciamos a publicação deste texto de Daniel Guérin (Capitulo II do livro “l’anarchisme”) que destaca o impulso libertário que esteve na base da revolução dos sovietes, mas cedo esmagada e controlada pelo partido bolchevique. As greves e o controlo de fábricas pelos trabalhadores, a insurreição de Kronstadt, o amplo movimento de camponeses da Ucrânia e a luta levada a cabo por Makhno foram alguns dos momentos altos desse espírito libertário que atravessou a revolução russa. A tradução é da companheira VTS para o Portal Anarquista.

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Makhno

O ANARQUISMO NA REVOLUÇÃO RUSSA

Depois de ter ganho um segundo sopro de vida no sindicalismo revolucionário, o anarquismo vai buscar um terceiro fôlego na Revolução Russa. A um primeiro olhar, esta afirmação pode surpreender o leitor habituado a considerar que a grande mudança revolucionária de Outubro de 1917 se deve apenas à obra e ao apanágio dos bolcheviques. Na  realidade, a Revolução Russa foi um vasto movimento de massas, uma vaga de fundo popular que ultrapassou e submergiu as formações ideológicas, não sendo pertença de ninguém a não ser do povo. Na medida em que se tratou de uma revolução autêntica porque  impulsionada de baixo para cima, produzindo assim espontaneamente órgãos de democracia directa, apresenta todas as características de uma revolução social com tendências libertárias. Todavia, a relativa fraqueza dos anarquistas russos impediu-os de explorar as situações excepcionalmente favoráveis ao triunfo das suas ideias.

A Revolução acabaria por ser confiscada e desnaturada pelo domínio, no dizer de uns, pela astúcia, no dizer de outros, da equipa de revolucionários profissionais que constituía o entourage de Lenine. Esta derrota, simultaneamente do anarquismo e da autentica revolução popular, não foi totalmente estéril para a ideia libertária. Primeiro porque a apropriação colectiva dos meios de produção não foi posta em causa,  o que salvaguardou o terreno para que, talvez um dia, o socialismo de base prevaleça ao socialismo de Estado; segundo porque a experiência da U.R.S.S. permitiu que alguns anarquistas russos e não russos  elaborar lições complexas de um derrota temporária – lições de que o próprio Lenine parecia tomar consciência nas vésperas da sua morte -, de repensar, a neste sentido e conjuntamente os problemas da revolução e do anarquismo.Numa palavra, segundo a expressão de Kropotkine, retomada por Voline, a Revolução ensinou-lhes, se de tal tivessem necessidade, como não fazer uma revolução. Longe de provar a impraticabilidade do socialismo libertário, a experiência soviética confirmou, em grande medida, a justeza profética dos pontos de vista dos fundadores do anarquismo nomeadamente da crítica anarquista ao socialismo autoritário.

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Comício na fabrica Putilov, Petrogrado, 1917

UMA REVOLUÇÃO LIBERTÁRIA

O ponto de partida da Revolução de 1917 situa-se na revolução anterior, de 1905, no decurso da qual surgiram órgãos de um tipo especial: os sovietes, nascidos nas fábricas de São Petersburgo, aquando de uma greve espontânea. Tendo em conta a quase total ausência quer de um movimento sindical quer de uma tradição sindicalista,  os sovietes preencheram um vazio na coordenação da luta nas fábricas em greve.

O anarquista Voline fez parte do pequeno grupo que, em ligação estreita com os operários e de acordo com a sugestão destes, teve a ideia de criar o primeiro soviete. O seu testemunho vai ao encontro do de Trotsky que, alguns meses mais tarde, se tornaria presidente do soviete e escreveria no seu depoimento sobre 1905 “A actividade do soviete significava a organização da anarquia. A sua existência e o seu posterior desenvolvimento marcaram uma consolidação da anarquia”.

Esta experiência ficaria gravada para sempre na consciência operária e, quando irrompeu a Revolução de 1917, os dirigentes revolucionários não precisaram de inventar nada. Os operários tomaram espontaneamente as fábricas. Os sovietes ressurgiram de si próprios, do que tinham sido em 1905. Uma vez mais os sovietes tomaram a dianteira aos profissionais da Revolução. O próprio Lenine confessaria que as massas operárias e camponesas estavam “cem vezes mais à esquerda” dos bolcheviques. O prestígio dos sovietes era tal que a insurreição de Outubro jamais poderia ter acontecido a não ser em nome e por referência a estes últimos.

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No entanto, apesar do seu ímpeto revolucionário, faltava aos sovietes homogeneidade, experiência revolucionária e preparação ideológica. Por isso, eram presa fácil para os partidos políticos com concepções revolucionárias vacilantes. Apesar de ser uma organização minoritária, o partido bolchevique era a única força verdadeiramente organizada e conhecedora dos fins que se propunha. Sem rivais à extrema-esquerda, fosse no plano político ou no plano sindical, dispondo de quadros de primeira ordem, o partido bolchevique implementou, como admite Voline, uma actividade selvagem, febril e rápida como um relâmpago.

No entanto o aparelho do Partido – do qual Staline era, então, uma jóia obscura – olhara sempre com desconfiança os sovietes, considerando-os concorrentes incomodativos. Após a tomada do poder, a tendência espontânea e irresistível de socializar a produção foi num primeiro momento canalizada pelo controlo operário. O decreto de 14 de Novembro de 1917 legaliza a ingerência dos trabalhadores na gestão das empresas e no cálculo do preço de custo, abole o segredo comercial, obriga os patrões a exibir quer a correspondência quer os livros de cálculo. “As intenções dos dirigentes da Revolução, relata Victor Serge, não iam além disso”. Em Abril de 1918, os dirigentes encaram ainda […] a constituição de sociedades mistas por acções, nas quais participariam o Estado e capitais russos e estrangeiros”. ” A iniciativa das medidas de expropriação partiram das massas e não do poder.”.

Desde o dia 20 de Outubro de 1917 que fora apresentada, no primeiro congresso dos conselhos de fábrica uma moção de inspiração anarquista que reivindicava “O controlo da produção e as comissões de controlo não devem ser meras comissões de verificação mas […] células do futuro que desde agora preparem a transferência da produção para as mãos dos trabalhadores”. “Após a Revolução de Outubro, observa A Pankratova, as tendências anarquistas afirmaram-se com tanta mais facilidade e tanto mais sucesso quanto mais viva era a oposição e resistência dos capitalistas à aplicação do decreto sobre o controlo operário e quanto mais eles recusavam a ingerência dos trabalhadores na produção”.

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Marinheiros de Kronstadt

O controlo operário mostrara, de facto, ser uma meia-medida, inoperante e coxa. Os empregadores sabotavam, dissimulavam os seus stocks, desviavam os utensílios, provocavam ou faziam lock-out aos trabalhadores; por vezes serviam-se dos comités de fábrica utilizando-os como simples agentes ou auxiliares da direcção, outras vezes, por julgarem lucrativo, tentavam ser nacionalizados. A tais manobras, os trabalhadores respondiam tomando as fábricas, reactivando-as à sua conta. “Nós não expulsaremos pelas nossas mãos os industriais”, diziam os operários nas suas moções, “mas tomaremos conta da produção caso eles se neguem a assegurar o funcionamento das fábricas”. Pankratova acrescenta que, neste primeiro período de socialização “caótica” e “primitiva”, os conselhos de fábrica “apoderavam-se frequentemente das direcções de fábricas cujos proprietários tivessem fugido ou sido eliminados”.

Muito rapidamente o controlo operário teve de se apagar perante a socialização. Lenine violentou literalmente os seus timoratos tenentes quando os atirou para o “buraco da pujante criação popular”, obrigando-os a falar uma linguagem verdadeiramente libertária. A base da reconstrução revolucionária devia ser a autogestão operária. Só ela podia suscitar nas massas um tal entusiasmo revolucionário que tornasse possível o impossível. Quando o último operário manual, quando um qualquer sem-trabalho ou uma qualquer cozinheira visse as fábricas, a terra, a administração confiadas às associações de operários, de empregados, de funcionários, de camponeses, aos comités democráticos do abastecimento, etc., criados espontaneamente pelo povo, “quando os pobres e desafortunados vissem e sentissem tudo isso, nenhuma força seria capaz de vencer a revolução social”.

O futuro abria-se a uma república do tipo da Comuna de 1871, a uma república de sovietes. “A fim de tocar o espírito das massas, conta Voline, de ganhar a sua confiança e a sua simpatia, o partido bolchevique lançou […] palavras de ordem que até então caracterizavam […] o anarquismo”. Todo o poder aos sovietes, slogan intuitivamente compreendido pelas massas no sentido libertário. “Os trabalhadores, testemunha Archinoff, interpretam a ideia do poder poder soviético como a ideia de disponibilizarem de si mesmos, social e economicamente. No III Congresso dos sovietes (no início de 1919) Lenine lança:

“As ideias anarquistas tomam agora formas vivas” e, pouco depois, no VII congresso do Partido (6 a 8 de Março), fez adoptar teses sobre questões, entre outras, de socialização da produção administrada por organizações operárias (sindicatos, comités de fábrica, etc.), de abolição dos funcionários de carreira, da polícia, das forças armadas, de igualdade de salários e de condições, de participação de todos os membros dos sovietes na gestão e administração do estado, de supressão completa e progressiva do dito Estado e do símbolo monetário (1) . No congresso dos Sindicatos (Primavera de 1918), Lenine descrevia as fábricas como “comunas auto-governadas de produtores e consumidores”. O anarco-sindicalista Maximoff vai ao ponto de defender que “Os bolcheviques tinham abandonado não apenas a teoria do apodrecimento gradual do Estado como também a ideologia marxista no seu conjunto. Tinham-se tornado numa espécie de anarquistas”.

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UMA REVOLUÇÃO AUTORITÁRIA

Mas se o alinhamento audacioso pelo instinto e pela temperatura revolucionária das massas conseguiu oferecer aos bolcheviques a direcção da Revolução, não se pode dizer que tal alinhamento correspondesse à sua ideologia tradicional e às suas verdadeiras intenções, autoritários como eram, de longa data, ferrenhos defensores das noções de Estado, de ditadura, de centralização, do partido dirigente, da gestão da economia a partir do topo, noções todas elas em flagrante contradição com uma concepção realmente libertária da democracia soviética.

“O Estado e a Revolução”, escrito nas vésperas da insurreição de Outubro, é um espelho no qual se reflecte a ambivalência do pensamento de Lenine. Algumas páginas poderiam ter sido assinadas por um libertário e, como vimos acima, os anarquistas são, pelo menos parcialmente, homenageados nesse livro de Lenine.  Mas o apelo à revolução de baixo para cima desdobra-se num apelo em favor da revolução de cima para baixo.

As concepções estatizantes, centralizadoras, hierárquicas não tomam sequer a forma de agenda escondida, mais ou menos dissimulada; muito pelo contrário, essas concepções são francamente apresentadas: o estado sobreviverá à conquista do poder pelo proletariado e não perderá a sua força a não ser após um período transitório. Quanto tempo durará este purgatório? Essa duração não nos é escondida – é-nos dito, sem qualquer pena e mesmo com alívio – que o processo será “lento”, de “longa duração”. O que a Revolução trará no ventre, sob a aparência de poder dos sovietes, será o “Estado proletário” ou “ditadura do proletariado”, “Estado burguês sem burgueses”, diz mesmo o autor quando consente a si próprio enxergar o fundo do seu pensamento. Este Estado omnívoro tem verdadeiramente a intenção de tudo absorver.

Lenine aprende na escola do seu contemporâneo, o capitalismo de Estado alemão, a economia de guerra (Kriegswirtschaft). A organização capitalista da grande indústria moderna, com a sua “disciplina de ferro” será outro dos seus modelos. Lenine pasma-se, nomeadamente perante um monopólio de Estado como os C.T.T (2) e exclama:“Que mecanismo admiravelmente aperfeiçoado! Toda a vida organizada como os Correios, […] eis o Estado, eis a base económica de que precisamos!” Querer dispensar a “autoridade” e a “subordinação” não passa de “sonhos anarquistas”, conclui, de uma assentada. Antes, Lenine aquecera o pensamento com a ideia de confiar a produção e as trocas às associações operárias e à autogestão. Enganara-se ao distribuir as cartas do baralho. E não esconde a sua receita mágica: todos os cidadãos serão “os empregados e os operários de um único trust universal estatal” toda a sociedade será convertida em “um grande escritório e uma grande fábrica”. Os sovietes também, claro, mas colocados sob a alçada do partido operário, um partido cuja missão histórica é a de “dirigir” o proletariado.

Os mais lúcidos anarquistas russos não se enganaram. No apogeu do período libertário de Lenine, advertiram os trabalhadores para a urgência de estarem atentos: no jornal anarquista Golos Truda (A Voz do Trabalho), podiam ler-se, a partir dos últimos meses de 1917 e nos início de 1918, escritos pela pena de Voline, estes avisos proféticos: “Uma vez uma poder consolidado e legalizado, os bolcheviques – que são socialistas, políticos e estatistas, ou seja homens de acção centralistas e autoritários – começarão a organizar a vida do país e do povo com os meios governamentais e ditatoriais impostos pelo centro. […]. Os vossos sovietes tornar-se-ão, pouco a pouco, simples orgãos executores da vontade do governo central […]. Assistiremos ao estabelecimento de um aparelho autoritário político e de Estado, que agirá a partir de cima e tudo esmagará com o seu punho de ferro […]. Malogrado será aquele que não estiver de acordo com o poder central.” “Todo o poder aos sovietes será, de facto, a autoridade dos líderes do Partido.”

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As tendências cada vez mais anarquizantes das massas obrigaram Lenine, de acordo com Voline, a afastar-se por algum tempo do caminho antes traçado. Lenine não deixaria que o estado, a autoridade e a ditadura subsistissem, nem por uma hora que fosse nem mesmo por um minuto se se corresse o risco de  acontecer  “o anarquismo”. “Mas, ó grandes deuses, não sois vós capazes de prever  […] o que dirá o cidadão Lenine assim que o poder actual for consolidado, momento em que será então possível não dar ouvidos as vozes das massas?”. Lenine voltará aos velhos carreiros batidos e criará um “Estado marxista”, do tipo mais aperfeiçoado possível.

Seria obviamente um erro afirmar que Lenine e a sua equipa fizeram conscientemente uma emboscada às massas. Havia menos duplicidade neles do que dualismo doutrinário. A contradição era tão evidente, tão flagrante entre os dois pólos de pensamento de Lenine que era previsível a sua explosão provocada pelos  factos. Das duas, uma: ou a pressão anarquizante das massas obrigava os bolcheviques a esquecer a vertente autoritária das suas concepções ou, inversamente, a consolidação do poder dos bolcheviques em  sincronia com o esvaziamento da revolução popular levá-los-ia a guardarem as suas veleidades anarquizantes no armazém dos acessórios.

Surgiram novos elementos que inverteram os dados do problema: as terríveis circunstâncias da guerra civil e da intervenção estrangeira, a desorganização dos transportes, a penúria dos técnicos. Estes elementos levaram os dirigentes bolcheviques a tomar medidas de excepção conduzindo-os à ditadura, à centralização, ao recurso ao “punho de ferro”. Os anarquistas contestaram que tais dificuldades resultassem apenas de causas “objectivas” e exteriores à Revolução.  Segundo os anarquistas, tais dificuldades derivaram em grande parte da lógica interna das concepções autoritárias do bolchevismo, da impotência de um poder excessivamente burocratizado e centralizado. De acordo com Voline, o total desmoronar do país – marcado pela paralisia da actividade económica, pelo arruinar da agricultura, pela destruição de todos os laços que uniam entre si os vários sectores de actividade – deve-se à incompetência do Estado, à pretensão deste que, tudo querendo conduzir e controlar, se tornou incapaz de reorganizar a vida económica do país.

Voline conta, por exemplo, que na antiga fábrica de petróleo Nobel, em Petrogrado, abandonada pelos proprietários, os quatro mil operários decidiram pô-la a trabalhar colectivamente. Dirigiram-se, em vão, ao governo bolchevique. Tentaram, pelos seus próprios meios, pôr a empresa a trabalhar.

Dividiram-se em grupos móveis para encontrar combustível, matérias primas, mercados para colocar os produtos e meios de transporte. Relativamente aos últimos, os operários tinham iniciado negociações com os camaradas dos caminhos de ferro. Ora, o governo ficou muito zangado. Responsável perante o país, o governo não podia admitir que uma fábrica se auto-determinasse. Por obstinação, o conselho operário convocou uma assembleia geral de trabalhadores. O comissário do povo para o Trabalho deu-se ao luxo de prevenir os operários contra a hipótese de serem acusados de “um acto de indisciplina grave”. Condenou a “atitude anárquica e egoísta” dos operários. Ameaçou despedi-los sem indemnização. Os trabalhadores retorquiram que não estavam a solicitar nenhum privilégio ao governo mas apenas a querer que fosse permitido  aos operários e aos camponeses de todo o país agirem do mesmo modo. Em vão. O governo manteve o seu ponto de vista e a fábrica foi fechada.

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O testemunho de Voline é corroborado pelo de uma comunista: Alexandra Kollontaï que, em 1921, lamentaria do facto de inúmeras iniciativas operárias terem sido anuladas pelo papaguear das estéreis palavras administrativas. “Quanto azedume sentem os operários (…) ao verem e ao saberem o quanto teriam podido realizar eles próprios,  se lhes tivessem sido reconhecidos o direito e a possibilidade de agirem  (…) A iniciativa foi enfraquecendo e o desejo de agir morreu.”

O poder dos sovietes não duraria mais do que alguns meses, de Outubro de 1917 até à Primavera de 1918. Os conselhos das fábricas foram desapossados das suas atribuições sob o pretexto segundo o qual a autogestão não tinha em conta as necessidades reais da economia, alimentava um egoísmo entre empresas que por isso competiam entre si, disputando os magros recursos disponíveis, querendo sobreviver a qualquer preço, mesmo que outras fábricas fossem, essas sim, mais importantes para o Estado e melhor equipadas.  Numa palavra, e de acordo com A. Pankratova, a autogestão geraria uma fragmentação da economia em “federações autónomas de produtores, do tipo sonhado pelos anarquistas”. É claro que o nascimento da autogestão não se fazia sem algumas culpas no cartório, o que é compreensível se pensarmos que se procurava criar novas formas de produção tacteando a custo caminhos nunca antes percorridos na história da humanidade, pelo que muitos foram os enganos e muitas as opções erradas.

Este era o tributo da aprendizagem. Kollontaï defendia que o comunismo não poderia nascer a não ser de um processo de pesquisas práticas, com erros certamente, mas desenvolvido a partir das “forças criativas da própria classe trabalhadora”.

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Não era este o ponto de vista dos dirigentes do Partido. Estavam demasiado felizes por terem recuperado o poder das fábricas que, no seu foro íntimo, tinham resignadamente entregue de mão beijada aos comités de empresa. Desde 1918 que Lenine mostrava preferir “a vontade de um só” na gestão das empresas. Os trabalhadores deviam obedecer “incondicionalmente” a uma única vontade, a dos dirigentes do processo de trabalho. Todos os chefes bolcheviques, afirma Kollontaï, mostravam “desconfiança pelas capacidades criativas dos colectivos operários”. Para mais, a administração fora invadida por numerosos elementos pequeno-burgueses, resíduos do antigo capitalismo russo, que se adaptaram demasiado rapidamente às instituições soviéticas,  fazendo com que lhes fossem atribuídos postos de responsabilidade nos diversos comissariados, entendendo que a gestão económica fosse confiada, não às organizações operárias mas a eles próprios.

Assistimos à crescente interferência da burocracia de estado na economia. A partir de 5 de Dezembro de 1917, a indústria foi encimada por um Conselho Superior da Economia, encarregue de coordenar autoritariamente a acção de todos os órgãos da produção. O congresso dos Conselhos da Economia (26 de Maio – 4 de Junho de 1918) decidiu que a formação das direcções de empresas teria de obedecer ao critério segundo o qual dois terços dos membros seriam nomeados por conselhos regionais ou pelo Conselho Superior da Economia e apenas um terço seria eleito no local de trabalho pelos operários.

O decreto de 28 de Maio de 1918 estendeu, de uma assentada, a colectivização a toda a indústria, transformando as socializações espontâneas dos primeiros meses da Revolução em nacionalizações. Competia ao Conselho Superior da Economia a organização da administração das empresas nacionalizadas. Os directores e os quadros técnicos permaneceram nas suas funções mas nomeados agora pelo Estado. No II congresso daquele Conselho, nos finais de 1918,  os conselhos de fábrica foram energicamente admoestados pelo relator pelo facto de na prática dirigirem as fábricas ocupando o lugar onde deveriam estar conselhos de administração.

Continuou a haver eleições para os comités de fábrica, mantendo-se assim intacta a fachada, já que, por um lado, cabia a um membro da célula comunista ler uma lista pré-fabricada de candidatos e, por outro lado, os votos eram “de mão no ar” na presença dos “guardas comunistas” armados, da empresa. Quem ousasse declarar-se contra os candidatos propostos era castigado com sanções económicas tais como, entre outras, a desqualificação salarial.  Tal como expõe Archinof, passou a existir apenas um chefe omnipresente, o Estado. As relações entre os operários e o novo patrão reproduziram as antigas relações entre trabalho e capital. O assalariato (3)  foi restaurado, com a única diferença de se constituir agora com o carácter de um dever para com o Estado.

Os sovietes passaram a ter uma função nominal, transformados que foram em instituições de poder governamental. “Os sovietes devem passar a ser as células de base do Estado”, declarou Lénine, a 27 de Junho de 1918, no  congresso dos conselhos de fábrica.  Foram assim reduzidos, de acordo com os termos de Voline, ao papel “de órgãos puramente administrativos e executivos, encarregues de tarefas menores e de nível local, totalmente submetidos às “directivas” das autoridades centrais: governo e órgãos dirigentes do Partido. Nunca mais tiveram nem “a sombra de um poder”. No III congresso dos sindicatos (Abril de 1920) o relator, Lovovsky, confessou: “Renunciámos aos velhos métodos de controlo operário e mantivemos o princípio estadista”. A partir de então, o “controlo” passou a ser exercido por um organismo do Estado: a Inspecção operária e camponesa.

As federações da indústria, de estrutura centralista, tinham anteriormente servido os objectivos dos bolcheviques de enquadrar e subordinar os conselhos de fábrica, federalistas e libertários por natureza. A partir do dia 1 de Abril, dava-se por concretizada a fusão entre os dois tipos de organização. A partir de então, os sindicatos, vigiados pelo partido, passaram a desempenhar um papel disciplinar. O sindicato dos metalúrgicos de Petrogrado proibiu as “iniciativas desorganizadoras” dos conselhos de fábrica e considerou blasfemas e das mais perigosas as suas tendências de passar para as mãos dos trabalhadores qualquer fábrica. Era neste ponto que, dizia-se, estavam a ser reproduzidas, da pior maneira possível, as cooperativas de produção “cujo ideário tinha há muito demonstrado falhar já que, mais dia menos dia, acabavam por se transformar em empresas capitalistas. Toda e qualquer empresa deixada ao abandono ou sabotada por um industrial, cuja produção fosse necessária à economia nacional, seria obrigatoriamente gerida pelo Estado. Era “inaceitável” que os trabalhadores se apropriassem das empresas sem a aprovação do aparelho sindical.

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Makhnovtchina

Após esta primeira operação de enquadramento chegou a hora de domesticar os sindicatos, de lhes retirar toda a autonomia, de os sanear, de adiar os seus congressos, de deter os seus membros, de dissolver ou fundir em unidades mais amplas as suas organizações. No final deste processo, toda a orientação anarco-sindicalista foi neutralizada, e o movimento sindical ficou estritamente subordinado ao Estado e ao partido único. As cooperativas de consumo passaram pelo mesmo processo. No início da Revolução, as cooperativas tinham surgido por todo o lado, multiplicado e federado de acordo com os interesses dos trabalhadores. Foram escapando, ao arrepio das práticas e das normas, ao controlo do partido, e uns quantos sociais-democratas (mencheviques) conseguiram infiltrar-se no seu seio. Assim, o primeiro passo para aniquilar as cooperativas foi o de privar as lojas locais  de todos os meios de abastecimento e de transporte, sob pretexto de serem “comércio privado” e agentes de “especulação”, ou mesmo sem qualquer pretexto. Em seguida foram encerradas de uma rajada todas as cooperativas livres e instaladas, no lugar destas e por via burocrática, cooperativas de Estado.  O decreto de 20 de Março de 1919 determinou que as cooperativas de consumo fossem absorvidas pelo comissariado para o abastecimento e as cooperativas industriais pelo Conselho Superior da Economia. Muitos cooperantes foram atirados para prisões.

A classe operária não reagiu nem com rapidez nem com vigor suficientes. Encontrava-se disseminada, isolada num imenso país atrasado e maioritariamente rural, esgotado pelas privações e pelas lutas revolucionárias e sobretudo estava desmoralizada. Os melhores elementos da classe operária tinham-se mobilizado para as frentes da guerra civil ou acabaram absorvidos pelo aparelho do partido e do governo. No entanto, muitos foram os trabalhadores que se sentiram, em graus diversos, frustrados nas suas conquistas revolucionárias,  privados dos seus direitos, colocados sob tutela, humilhados pela arrogância ou pelo arbitrário dos novos chefes, e tomaram consciência da verdadeira natureza do auto-proclamado “Estado proletário”. No decurso do Verão de 1918, operários descontentes levaram a cabo, nas fábricas de Moscovo e de Petrogrado, eleições de delegados escolhidos por entre os trabalhadores e pelos trabalhadores, com o objectivo de contrapor os seus autênticos “conselhos de delegados” aos sovietes de empresas já capturados pelo poder. De acordo com o testemunho de Kollontaï, os operários sentiam, viam e compreendiam que estavam a ser postos de lado, afastados, e comparavam os modos de vida dos funcionários soviéticos com a maneira como viviam eles próprios – sobre quem assentava, pelo menos em teoria, a “ditadura do proletariado”.

Mas quando os trabalhadores tiveram uma percepção clara era tarde demais. O poder tivera tempo para se organizar solidamente e dispunha de forças de repressão capazes de esmagar qualquer tentação de acção autónomas das massas. Como diz Voline, uma luta amarga mas desigual, que durou três anos e se manteve desconhecida fora das fronteiras da Rússia, opôs uma vanguarda operária a um aparelho estatal que obstinadamente negava o divórcio consumado entre ambos. De 1919 até 1921, as greves multiplicaram-se nos grandes centros, sobretudo em Petrogrado mas também em Moscovo, greves que foram, como veremos, reprimidas com dureza.

No próprio interior do Partido dirigente surgiu uma “Oposição operária” a reivindicar o regresso à democracia soviética e à autogestão. No X congresso do Partido, em Março de 1921, um dos porta-vozes, Alexandra Kollontaï, distribuiria uma brochura na qual se pedia liberdade de iniciativa e de organização  para os sindicatos bem como a eleição, por um  “congresso de produtores”, de um órgão central de administração da economia nacional. O opúsculo foi confiscado e proibido. Lénine conseguiu que fosse adoptada, pela quase unanimidade dos congressistas, uma resolução que assimilava as teses da Oposição a desvios pequeno-burgueses e anarquistas. O “sindicalismo”, o “semi-anarquismo” dos opositores era, aos olhos de Lenine, um “perigo directo” para o monopólio do poder exercido pelo Partido em nome do proletariado.

A luta continuaria no seio da direcção da central sindical. Por terem defendido a independência dos sindicatos relativamente ao Partido, Tomsky e Riazanoc foram excluídos do presidium (4) e enviados para o exílio. Destino idêntico teria o principal dirigente da Oposição operária, Chliapnikov, imediatamente seguido pelo animador de um outro grupo da oposição,  G. I. Miasnikov. Este era um operário autêntico, justiceiro do grão-duque Michel, em 1917. Tinha 15 anos de Partido a somar, no período anterior à Revolução, a sete anos de prisão e setenta e cinco dias de greve de fome, e ousara, em Novembro de 1921, imprimir uma brochura onde  se lia que os trabalhadores tinham perdido a confiança nos comunistas porque o Partido deixara de ter uma linguagem comum à linguagem das bases, e que o Partido voltava agora contra a classe operária os meios de repressão que utilizara, entre 1918 e 1920, contra a burguesia.

(continua)

[1]N.T. Rublo (Pуб)

[2]N.T. Correios, Telégrafos e Telefones, em Portugal; P.T.T., Poste, Télégraphes et Téléphones, em França e língua francesa.

[3]N.T. Assalariato enquanto classe social constituída pelos assalariados (português do Brasil).

[4] N.T. O Soviete Supremo era chefiado por um grupo de deputados eleitos entre os demais, o chamado Presidium, e dividido em duas câmaras eleitas para mandatos de quatro anos

Tradução: VTS

II Capítulo de “L´Anarchisme, Daniel Guérin, Ed. Gallimard, 1965 (augmentée: 1973)

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