‘Algumas verdades sobre o individualismo libertário’, por Júlio Carrapato


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Numa altura em que muitos, ainda inebriados pela teologia marxista-leninista, põem em oposição o individualismo ao associativismo ou o individuo ao colectivo, convém recordar aquilo que sempre distinguiu os anarquistas das correntes autoritárias e que foi o acento tónico permanentemente colocado no indivíduo livre e livremente associado a outros indivíduos livres. Só desta associação horizontal poderá resultar uma efectiva e profunda transformação da sociedade, de que as associações serão o gérmen.

Para os anarquistas, que bebem directamente da tradição libertária, só indivíduos autênticos, únicos, autónomos, se podem associar com outros iguais – se não resta a massa, facilmente manobrável e controlável, seja nos regimes de capitalismo de Estado ou de mercado, seja nos países totalitários de marca fascista ou comunista, como bem observou Wilhelm Reich na sua “Psicologia de massa do fascismo” ou Hannah Arendt nos escritos contra o totalitarismo. Ao contrário dos marxistas, que reduzem todo o conteúdo civilizacional à economia e à luta de classes, confundindo a parte com o todo, os anarquistas consideram que são diversos os factores que influem na transformação social e, sem pôr em causa a importância da economia e da luta que opõe as classes detentoras do poder e dos meios de produção às classes exploradas e oprimidas, não menosprezam outras áreas da realidade e centram, quase sempre, o seu olhar sobre o individuo, enquanto tal, base e fim último da transformação individual e colectiva por que lutam e anseiam.

O texto que a seguir se divulga é assinado por Júlio Filipe e foi publicado no jornal “O Meridional”, nº 1, de Abril de 1978. O seu autor é Júlio Carrapato, um dos anarquistas mais influentes nas décadas de 70/80 do século passado no movimento libertário em Portugal. Ele próprio – um admirador de Durruti, tendo traduzido para português a sua biografia –  assumia-se como um colectivista, na velha tradição da CNT espanhola, sem que considerasse que isso entrava em contradição com o individualismo libertário que advogava e  que fora beber a homens como Albert Libertad ou Max Stirner.

Fica aqui este texto, escrito no estilo singular de Júlio Carrapato, em defesa do individualismo libertário. E, como ele, consideramos que a crítica cerrada ao individualismo é um dos grandes mitos construídos pelo marxismo e pelas correntes autoritárias para assim melhor manobrarem no seu interesse as vontades individuais.

Individualismo que, na perspectiva libertária, não se opõe à associação e à solidariedade, nem ao apoio mútuo entre iguais, antes pelo contrário: o livre associativismo pressupõe – e ajuda também a criar – indivíduos livres, autónomos, solidários e… únicos.

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Algumas verdades sobre o Individualismo Libertário

Júlio Filipe (*)

O INDIVÍDUO E AS MODAS

Não está na moda celebrar as qualidades ou propriedades do indivíduo, nem proclamar que num universo castrador, é ele a única e grande potência, a que não admite a tirania de nenhuma forma de poder exterior e acima de si mesma. Não é de bom tom, numa sociedade estandartizada, especializada no fabrico em série, onde todos os bens são fungíveis e onde o repelente homo economicus dita a sua lei, proclamar que o indivíduo é único e, por conseguinte, não susceptível de ser substituído como um parafuso da engrenagem. Não é de bom gosto nem oportuno dizer com Royer-Collard que “todos os assuntos que não são os nossos assuntos pessoais, são assuntos do Estado”.

Não!, o individualismo exacerbado e indomável que tais frases ressumam, seria apontado na praça pública como um atentado contra a magnífica organização social vigente. O conselheiro Acácio, lembrando mais de oito séculos de história, faria apelo aos nossos briosos antepassados; o deputado Pacheco, batendo na testa desguarnecida até à nuca, pensaria na legislação repressiva a adequar; o Conde de Abranhos garantiria a protecção adequada aos bons cidadãos; Basílio aconselharia: “Caluniai, caluniai, sempre há-de haver alguma coisa que fique”; Tartufo diria que nada de grande, de monumental, de esmagador se fez sem o esforço colectivo e aglutinador; e todos em conjunto, unindo as impotências, desencadeariam a campanha. Os professores, doutorados em ciências sociais, subiriam, a quatro, para cima das respectivas cátedras e fulminariam o crime anti-social por excelência. Os sociólogos e os zoólogos diriam que o erro que se estava a cometer, Deus do céu!, era grosseiro, porquanto o animus societatis humano e o instinto gregário asinino figuram logo nas primeiras páginas de todos os manuais de sócio-zoologia. Os economistas barafustando na botica de Mercúrio, deus dos comerciante e dos ladrões, encarrapitar-se-iam na sua ciência de pacotilha e falariam da divisão social do trabalho, a qual pelos vistos refuta as veleidades individualistas. Os psiquiatras e os psicólogos sonhariam com a pele do indivíduo que sofresse da doença de “perigosidade social”, esticada sobre o cavalete de tortura. E os sacerdotes da Santa Madre Igreja, para culminar a sessão, com uma voz bem treinada no canto gregoriano, mostrariam, vanitas vanitatum, quanta soberba o individualismo encobre e quão contrário é aos ensinamentos do Divino Mestre, do Bom Pastor, do Cordeiro Pascal.

Mais papistas que o Papa, os marxistas, leninistas, sociais-democratas, castro-guevaristas, maoístas, tengsiaopinquistas, trotsquistas e outros funâmbulos da derradeira das religiões reveladas, os quais o 25 de Abril produziu em tão exuberante quantidade, ainda iriam mais longe no anátema. Declarariam logo ex-abrupto que o indivíduo é um produto da sociedade burguesa, um desses artigos de luxo da sociedade de consumo, mas que, com eles no poleiro, o fado seria outro e todas as veleidades acabariam. Todos seríamos iguais a zero e só em conjunto seriamos alguma coisinha – o que me parece estar incorrecto até matematicamente, mas não faz mal. Todos marcharíamos como os soldadinhos de chumbo do Presidente Mao; todos cantaríamos só em coro, como os alentejanos saudados na sua maneira de cantar pelo poeta José Gomes Ferreira; todos lutaríamos por uma proletarização total e pediríamos em altos brados uma medalha colectiva de heróis do trabalho; enquanto alguns camaradas, com um sentido de igualdade mais exacerbado do que o comum dos camaradas iguais, e justamente promovidos na hierarquia do mérito, se ocupariam do nosso bem, não nos deixariam ir para o mal nem cair em tentações. E Artur Corvelo, esse rapaz de Oliveira de Azeméis de que nos fala Eça de Queirós em “A Capital”, todos os cinco minutos brandiria o magro pulso crispado, como um polichinelo, e gritaria de maneira mui original: – Abaixo o individualismo pequeno-burguês!

Nós, porém, não nos deixamos intimidar. Achamos das mais relativas a ciência dos economistas e dos sociólogos. Não respeitamos a sabicheza multi-secular, brutal à maneira de Torquemada ou suavemente impostora à maneira das encíclicas, da Santa Igreja. Aos cantares alentejanos, preferimos a maneira de cantar dos índios Guyaki, os quais, segundo Pierre Clastres, cantam individualmente e não sabem cantar em coro bem afinadinho. O conjunto das suas vozes é mais polifónico que sinfónico; é o conjunto sempre instável e sempre novo das melodias de cada um que se encontram, sem precisarem para o efeito da batuta de nenhum maestro. E, para cúmulo, achamos que o socialismo e o comunismo dos “socialistas científicos” e dos comunistas autoritários seriam, se fossem realizáveis até ao fim, o maior pesadelo que imaginar se possa, apenas comparável à organização da sociedade das abelhas e das formigas. Por conseguinte, repetimo-lo, não nos deixamos intimidar. Se não pretendemos ser professores nem alunos, nem postos emissores nem postos receptores, nem pastores nem carneiros, nem carcereiros nem prisioneiros, nem exploradores nem explorados, nem elegíveis nem eleitores, bem representantes nem representados, que mossa nos podem fazer as excomunhões? Os cães ladram e o indivíduo passa. O indivíduo que se preza, claro está, e que não quer nada nem ninguém, nem acima nem abaixo dele, nem entronizar nem ser entronizado; nem endeusar nem ser endeusado. E é tão difícil ser-se hoje em dia, nesta sociedade de consumo e de opressão, um indivíduo autêntico, contrariamente ao que dizem os sinistros partidários do nivelamento por baixo, semelhante ao da relva cortada com a tesoura de tosquiar! É tão difícil não se ser um manequim da rebeldia, um estereótipo da revolta ou uma imagem de Epinal da revolução! Ou então uma pessoa não se limitar a uma profissão, um estado civil, um número de matrícula, um bilhete de identidade, uma caderneta militar, um boi que é levado ao matadouro, um automóvel que é posto na garagem, um cheque a assinar, uma letra a vencer, um aumento de salário, um posto na hierarquia, um cartão de aderente a um partido, uma carta de cotizante sindical…. É tão difícil, em suma, não se ser uma imagem de marca qualquer, no seio de uma sociedade que só vive de encenação e de publicidade, e onde se prefere sempre a imagem à realidade, como sublinhava Feuerbach, ao desmontar o mecanismo religioso…

STIRNER E AS RELIGIÕES HUMANITÁRIAS E SOCIETÁRIAS

o-unico-e-sua-propriedade-max-stirnerO pior é que o autor de “A essência do cristianismo”, depois de analisar a essência do mesmo, assim como a religião em geral; depois de declarar que as grandes catedrais não eram nenhuma homenagem a nenhum Deus, mas sim ao Homem – sendo neste sentido não maravilhas da devoção, mas sim da arquitectura; depois de declarar que Deus só tinha aparecido como algo de superlativamente grande, bom, misericordioso, porque o Homem se tinha superlativamente despojado das suas qualidades humanas de grandeza, bondade e misericórdia; caía de pés juntos e de mãos postas na religião do Homem com H maiúsculo e declarava que o Homem era o deus do Homem.

O individualista libertário Max Stirner que publicou “O único e a sua propriedade”, em 1843, e viria a influenciar poderosamente o pensamento de inúmeros anarquistas e o anarquismo em geral, foi o único membro da esquerda hegeliana (onde no entanto campeavam sumidades como Bruno Bauer, Karl Marx, Friedrich Engels, etc..) a criticar convenientemente Feuerbach. Pondo o dedo na ferida, disse que o Homem era a nova divindade que reinava no reino dos céus. Nova divindade tão hostil como qualquer outra ao indivíduo cioso da plena liberdade dos seus movimentos. Com efeito, quer os humanistas – aqueles a quem Stirner chamava os “liberais humanitários” – sejam lacrimejantes ou não, o facto é que sublimam sempre a indiferença, a raiva ou o desencanto que sentem pelos indivíduos, com um amor descomedido e delirante pela humanidade. Se for preciso, em nome de valores sempre sagrados, apunhalam os homens concretos; depois, à noite, ao velarem os mortos, acendem círios e cantam loas em honra da humanidade, essa besta societária com mais patas que uma centopeia.

E já que de Sociedade estamos a falar, Stirner, o individualista, também não pensava grande coisa dela, quer ela se dissesse classista, quer ela se dissesse sem classes. A razão era simples: A Sociedade, como Deus, como o Homem de Feuerbach, como o Proletariado de Marx, também constituía um tampão opressivo, algo de superior e de exterior ao indivíduo palpável, com a pretensão de fazer sempre dele um joguete. E todos os socialistas, evidentemente autoritários, a quem Stirner chamava “liberais sociais”, não passavam, em última análise, de mais uma confraria de frades cartuxos, que tinham feito votos de pobreza, erigiam altares à Sociedade, sonhavam com a expropriação da unicidade de cada indivíduo, para depois saírem-se com patacoadas delirantes do género: A Sociedade será proprietária de tudo e nós, seus membros, não seremos proprietários de nada, nem sequer dos nossos próprios membros, já que membros da supracitada Sociedade somos nós!

MAX STIRNER – KARL MARX: A POLÉMICA INEVITÁVEL

Claro que um pensamento tão pouco ameno, tão abertamente anti-societário, suscitou comentários das almas virtuosas e caritativas. O próprio Karl Marx, que na fase juvenil, anterior às sendas científicas e economicistas, é considerado algo libertário, pelo muito que foi beber a Proudhon, mostrou-se intransigente. Em “A ideologia alemã”, obra de juventude, embora só tenha sido publicada postumamente, chama São Max ao autor de “O único e a sua propriedade”. E, depois, como bom jesuíta, atribui a Max Stirner, entre outros negros desígnios, o de fazer o tão famigerado jogo da burguesia. Na realidade, porém, Stirner fazia apenas o seu jogo, não acatava as regras definidas assim tão depressa e nunca Marx o compreendeu. Até um autor tão “crítico” nos estudos que faz sobre os pensadores e os homens de acção do anarquismo (sobre Bakunine, por exemplo), como Henri Arvon, é obrigado a reconhecer que, mesmo na fase juvenil, Marx nunca foi capaz de ver o homem individual, o qual esmagou sempre com a couraça do homem social, isto é, do macaco a quem ensinaram as boas maneiras. Curiosa atitude da parte de um prosador que queria combater a Entfremdung (a alienação de que falava Hegel), sob todas as suas formas, e ao fim e ao cabo a tinha apenas, quando muito, elevado a um nível “superior”!

As razões do equívoco ou erro grosseiro de Marx, como se quiser, residem talvez no facto de o termo comunismo ter sido aplicado antes dele, nos tempos da grande Revolução Francesa e de Babeuf, com um sentido contrário e por oposição ao individualismo burguês triunfante. O comunismo erguia então a sua máscara de pureza ainda não conspurcada, nem pelo cretinismo da dialéctica e da filosofia alemã nem pelos crimes do lenino-stalinismo. Fazia-o frente aos desaires práticos do deve e haver burguês e da sua consabida máxima: cada um por si e os outros que se lixem. Máxima a que Guizot, político da confiança de Luís Filipe, mais conhecido pelo “rei burguês”, acrescentaria o conselho operacional: “Enriqueçam-se!”.

Sem embargo, pretender-se que entre o individualismo burguês, se é que assim se pode chamar-lhe, e o individualismo libertário de Max Stirner não há qualquer diferença, constitui, a nosso ver, a maior das atoardas. Os burgueses, a quem Stirner chamava ironicamente os “liberais políticos”, são duramente estigmatizados e sem complacências descabidas ao longo de “O único e a sua propriedade”. O autor sabia perfeitamente de que maneira a burguesia tinha liquidado os privilégios da nobreza e do alto clero do “Ancien Régime”. Tinha sido para os substituir por uma tirania ainda pior: a omnipotência da Lei. E ainda pior porque, se os privilégios antigos eram mais facilmente encarados como uma usurpação e um abuso, já as prescrições legais, no interior das constituições e códigos elaborados pelos representantes dos possidentes, tinham todo um ritual sacralizador e adquiriam foros de legitimidade, justiça, equidade… A burguesia, ou franja superior desse Terceiro Estado definido à sua maneira por Sieyès tinha tido a habilidade de ser um estrato médio triunfante, quer contra o Povo, quer contra os Estados que estavam acima dela. Tinha tido a habilidade de se estribar no primeiro, para depois bater os outros dois, por pessoa interposta, a qual teria o mesmo fim, chegada a sua vez. Ao subir para o poleiro, porque a prosperidade de todos os estratos sociais está ligada ao maior ou menor acesso às instituições, tinha criado verbalmente uma comunidade ilusória: a Nação que, na realidade, não era e não é mais do que o conjunto de todos os burgueses instalados sobre dado território. Indo mais além, Stirner não se limitava a dizer estas verdades duras. Interpretava o sonho burguês do Estado forte e centralizador, via inclusive nele a chave da propriedade burguesa que tinha sucedido à propriedade feudal. A burguesia queria muito simplesmente um Estado forte e estava disposta a pagar impostos elevados e direitos sucessórios para que aquele, revestido da sua legalidade e da sua pretensa legitimidade, do alto do seu pedestal sagrado, lhe garantisse os famosos títulos de propriedade. Desta forma, não é exagerado nós dizermos que a própria propriedade privada, na sua forma burguesa, não é mias que uma das formas de propriedade do Estado, esse monstro que a burguesia criou, na sua encarnação moderna, mas que acabou por lhe impor a sua vontade. Do exposto decorre que a burguesia não é proprietária, é concessionária.

E Stirner, que não era um reformista como Marx, uma vez que atacava a Sociedade e a organização hierarquizada que lhe está intimamente ligada: o Estado; não se limitava a atacar o Estado burguês, para defender o Estado popular ou proletário. Não! Nas páginas de “O único e a sua propriedade” encontra-se um dos mais violentos e um dos primeiros libelos contra o Estado, sob todas as suas metamorfoses históricas, de que há memória. Porque nas mãos do estado, o monopólio da força chamar-se-ia Lei; enquanto nas mãos dos indivíduos, o uso da força teria sempre o apodo de Crime. Todos os meios termos, todas as atitudes compreensivas em relação ao Moloch moderno, não podiam senão ser ou cantos líricos ou gesticulações incoerentes ou tentativas piedosas dos reformadores da Sociedade, desses socialistas que valiam que valiam tanto como a burguesia, em relação à qual se definiam, e que, com o seu Estado ainda mais tentacular e mais social, mais ainda viriam complicar o problema e torna-lo mais insolúvel.

Quanto ao Partido que, na boca dos revolucionários da nossa praça, será o instrumento emancipador daqueles que, pelos visto, têm dificuldade em ser maiores ou emancipados sozinho, o autor do Único via nele apenas uma mais pequena sociedade de abelhas. Demasiado lúcido para não ver como eram arrastados na lama e tratados de trânsfugas os ex-membros de qualquer partido, recusava-se a pertencer ao Partido, assim designado por antonomásia, a ser membro desse pequeno Estado dentro do Estado. Tomar partido, quando chegasse a altura, de acordo; agora ser coisa, ser pertença do Partido, isso nunca!

STIRNER, A ASSOCIAÇÃO E O EGOÍSMO

Não vamos todavia pensar que o pensamento de certo modo anti-social de Stirner, sendo a Sociedade aquilo que é, tem algo que ver com a torre de marfim ou equivale a preconizar o isolamento ou a masturbação solipsista do homem só. Stirner, homem responsável no elevado sentido do termo, porque a responsabilidade só pode ser pessoal, caso contrário cai-se na maldição bíblica, encarou sempre a possibilidade de se associar com outros indivíduos dignos, para a prossecução de objectivos comuns. Enquanto o indivíduo se podia servir da associação, deste modo contraposta à sociedade, para aumentar a força do seu braço e as suas potencialidades, era sempre a sociedade que se servia do indivíduo, como de um peão de brega. Por isso, seria de desejar ardentemente a total destruição desta última e a sua substituição por aquilo a que o autor do Único chamava a associação dos egoístas.

– Egoístas?! Bem me queria parecer, exclamaria Artur Corvelo, que tem o sentido do sacrifício. E todos os Abranhos e Tartufos supracitados aplaudiriam: – Abaixo o egoísmo! De altruísmo, de choro e ranger de dentes, de baba e ranho de todo o tamanho, de gado para o matadouro, de achas para o braseiro é que a nossa civilização devoradora de homens necessita. Que a nossa causa seja a de Deus, a da Sociedade, a do Homem, a do Proletariado, a do Partido, de acordo, mas que a nossa causa seja efectivamente muito nossa, como o pretende Stirner, o individualista, Stirner, o egoísta, isso é que não, com mil milhões de diabos!

Mas, e se o altruísmo não fosse mais do que uma forma de egoísmo? E se o homem, em geral, mesmo quando dá, estivesse sempre a zelar pelos seus interesses, estivesse sempre à espera de uma compensação, por muito imaterial e ideal que ela pudesse ser? E se, para cúmulo da desgraça, o revolucionário autêntico (ou o revoltado, como preferia chamar-lhe Stirner) fosse aquele que, por egoísmo, por não poder mais viver nesta sociedade de náusea, quisesse “um mundo novo a sério”, para empregarmos a fórmula do poeta António Aleixo? E se ele não fosse o altruísta por jesuitismo, o cristão de esquerda que estende a mão ao pobre e ao oprimido, para o manter eternamente numa posição de inferioridade e por não encontrar dentro de si mesmo motivos suficientes de revolta?

Enfim, aqui ficam estas considerações sobre o tão denegrido individualismo, sobre o tão exorcismado egoísmo, para o uso dos bons entendedores. Esperemos que não se limitem a lê-las, com o gesto requintado de estetas. É na prática que marcamos o nosso encontro.

(*) Pseudónimo de Júlio Carrapato, editor e dinamizador do jornal “O Meridional” publicado em Faro em finais da década de 70. Este artigo foi publicado no 1º número, datado de Abril de 1978

Relacionado: o “Individualismo Libertário” no Imaginário Social dos Anos 60, por Tania Salem

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