‘Os “Coletes Amarelos” mostram como o chão se move debaixo dos nossos pés’, por David Graeber


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Por David Graeber

david-graeber-420x420Se uma característica de qualquer momento verdadeiramente revolucionário é o completo fracasso das categorias convencionais para descrever o que está acontecer ao nosso redor, então esse é um bom sinal de que estamos vivendo  tempos revolucionários.

Parece-me que a profunda confusão, até mesmo a incredulidade, exibida pelos comentadores dos media franceses e estrangeiros diante de cada novo “acto” do drama dos Gilets Jaunes, que agora se aproxima rapidamente do seu clímax insurreccional, é o resultado de uma incapacidade quase total de levar em linha de conta  as formas como o poder, o trabalho e os movimentos de contrapoder mudaram nos últimos 50 anos e, em particular, desde 2008. Os intelectuais, na maior parte das vezes, entenderam muito mal essas transformações.

Para já, deixo duas sugestões quanto à origem de algumas dessas confusões:

      1. Numa economia financeira, apenas aqueles que estão mais próximos dos meios de criação monetária (essencialmente investidores e classes de gestores profissionais) têm condições para utilizar a linguagem do universalismo. Como resultado, quaisquer reivindicações políticas baseadas em necessidades e interesses particulares/imediatos tendem a ser tratadas como manifestação de uma política identitária; e, no caso da base social do GJ, torna-se impossível imaginá-las como algo mais do que protofascistas
      2. Desde 2011, tem havido uma transformação mundial dos pressupostos do senso comum sobre o que significa participar num movimento democrático de massas – pelo menos entre os mais dispostos a fazê-lo. Modelos de organização mais antigos, “verticais” ou de vanguarda, deram lugar rapidamente a um ethos de horizontalidade, onde a prática (democrática e igualitária) e a ideologia são, em última análise, dois aspectos da mesma coisa. A incapacidade de compreender essa mudança dá a falsa impressão de que movimentos como os GJ são anti-ideológicos, ou até mesmo niilistas.

Deixem-me fornecer alguns dados para estas minhas afirmações:

Desde que os EUA abandonaram o padrão-ouro, em 1971, assistimos a uma mudança profunda na natureza do capitalismo. A maioria dos lucros das empresas já não deriva da produção ou das vendas de qualquer produto, mas da manipulação de crédito, dívidas e da especulação das “rendas reguladas”. À medida que as burocracias governamentais e financeiras se tornam tão intimamente interligadas, é cada vez mais difícil distinguir uma da outra. Assim, riqueza e poder – especialmente o poder de fazer dinheiro, isto é, o crédito – também se tornaram, de facto, na mesma coisa. (Era para isto que chamávamos a atenção quando, no Occupy Wall Street, falávamos do “1%” – aqueles que tinham a capacidade de transformar a riqueza em influência política e a influência política em riqueza de novo).

Apesar disso, políticos e comentadores dos media recusam-se sistematicamente a reconhecer estas novas realidades. Por exemplo, no discurso público, ainda se fala de política fiscal como se fosse uma forma do governo arrecadar receitas para financiar as suas operações. Mas, na verdade, essa é apenas uma maneira de (1) garantir que os meios de criação de crédito nunca possam ser democratizados (pois somente crédito oficialmente aprovado é aceitável para o pagamento de impostos); e (2) redistribuir o poder económico de um sector social para outro.

Desde 2008, os governos vêm injetando dinheiro no sistema financeiro, o que, devido ao notório “efeito de Cantillon”, tendeu a gerar acumulação para aqueles que já detêm ativos financeiros e seus aliados tecnocratas entre os gestores profissionais. Em França, claro, esses são precisamente os macronistas. Os membros dessas classes sentem que são a personificação de qualquer universalismo possível; as suas concepções do ser universal firmemente enraizado no mercado; e, cada vez mais, essa atroz fusão da burocracia estatal e do mercado é a ideologia reinante daquilo a que se chama “centro político”. Nesta nova realidade centrista, recusa-se aos trabalhadores, cada vez mais, qualquer possibilidade de universalismo, já que eles, literalmente, não se podem dar a esse luxo. A capacidade de agir por preocupação com o planeta, por exemplo, e não pelas exigências da sua mais elementar sobrevivência, constitui agora um efeito colateral directo nas formas de produção de dinheiro e da distribuição administrativa das rendas; qualquer pessoa que seja forçada a pensar apenas nas suas necessidades materiais imediatas, ou nas da sua própria família, é vista como a afirmação duma identidade particular (anti-universalismo); e enquanto as reivindicações de algumas classes podem ser toleradas e (condescendentemente) favorecidas, as da “classe trabalhadora branca” só podem ser consideradas como uma forma de racismo. Vimos o mesmo nos EUA, onde comentaristas liberais argumentaram que, se os mineiros de carvão dos Apalaches votaram em Bernie Sanders, um socialista judeu, isso deveria ser considerado como uma expressão de racismo. Assim como a estranha insistência na afirmação de que os Gilets Jaunes devem ser fascistas, mesmo que eles próprios não se percebam enquanto tal.

Esses são instintos profundamente antidemocráticos.

Para entender o sucesso do movimento – isto é, do súbito surgimento e propagação de uma verdadeira política democrática, até mesmo insurreccional –, creio que há dois factores, em grande parte despercebidos, que devem ser levados em consideração.

O primeiro, é que o capitalismo financeiro envolve um novo alinhamento de forças de classes sociais, sobretudo uma oposição entre as classes de tecno-gestão (cada vez mais empregadas em “trabalhos de merda” como parte do sistema de redistribuição neoliberal) e as classes trabalhadoras, que agora podemos descrever melhor como “classes de cuidadores” – aquelas que nutrem, educam, cultivam, atendem, mantêm – e não como as classes produtivas do passado. Um efeito paradoxal da informatização é que, embora tenha tornado a produção industrial infinitamente mais eficiente, ela fez com que os trabalhos na saúde, na educação e no sector dos cuidados fossem menos eficazes. Isto combinado com o desvio de recursos para as classes dominantes sob o neoliberalismo (e a cortes assistênciais no estado de bem-estar ) significa que, praticamente em todos os lugares, tenham sido professores, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores domésticos, paramédicos e outros membros das classes de cuidadores que estiveram na linha de frente da militância laboral. Os confrontos entre os maqueiros e policias em Paris na semana passada podem ser tomados como um símbolo vivido da nova correlação de forças. Mais uma vez, o discurso público não alcançou esta nova realidade, mas cedo ou tarde teremos que fazer perguntas inteiramente novas. Não, por exemplo, quais são as formas de trabalho que podem ser automatizadas, mas o que realmente queremos que a automatização seja e o que não estamos dispostos a que seja. Por quanto tempo mais vamos estar dispostos a manter um sistema no qual quanto mais o trabalho é destinado a cuidar de outras pessoas, menos recebemos por ele?

Segundo factor: os acontecimentos de 2011, a começar pela Primavera Árabe, passando pelos movimentos de ocupação de praças em todo mundo, parecem ter marcado uma ruptura fundamental no senso comum político. Uma maneira de saber que estamos num momento revolucionário global é perceber que ideias consideradas loucas, em pouco tempo, tornaram-se as premissas básicas da vida política. A estrutura sem direcção, horizontal e directamente democrática do Occupy, por exemplo, era quase universalmente caricaturada como idiota e pouco prática e, assim que o movimento foi suprimido, dizia-se que era esse o motivo de seu “fracasso”. Essa visão, ignora fortemente não apenas a tradição anarquista, mas também a do feminismo radical e até mesmo certas formas de espiritualidade indígena. Mas agora ficou claro que essa fórmula tornou-se o modo padrão de organização democrática em todos os lugares, da Bósnia ao Chile, de Hong Kong ao Curdistão. Se um movimento democrático de massas emergir, esta é a forma que se pode esperar que ele adopte. Em França, Nuit Debout pode ter sido o primeiro a adoptar esta política horizontalista em larga escala. Mas o facto de um movimento originalmente de trabalhadores rurais de cidades pequenas e de trabalhadores independentes terem adoptado espontaneamente uma variação desse modelo mostra como estamos a lidar com um novo senso comum sobre a própria natureza da democracia.

As únicas pessoas que parecem incapazes de compreender essa nova realidade são os intelectuais. Assim como durante o Nuit Debout muitas das auto-nomeadas “lideranças” do movimento pareciam incapazes ou relutantes em aceitar a ideia de que formas horizontais de organização eram, de facto, uma forma de organização (elas simplesmente não conseguiam perceber a diferença entre isso e o caos). Agora, os intelectuais de esquerda e de direita insistem no facto de que os Gilets Jaunes são “anti-ideológicos”, incapazes de entender que, nos movimentos sociais horizontais, a unidade entre teoria e prática (que, para os movimentos sociais radicais do passado, tendiam a existir muito mais na teoria que na prática) é um facto real. Esses novos movimentos não precisam de uma vanguarda intelectual para lhes fornecer uma ideologia, pois eles já têm uma: a rejeição das vanguardas intelectuais e a adopção da pluralidade e da democracia horizontal.

Certamente, há um papel para os intelectuais nesses novos movimentos. Mas este papel terá que envolver um pouco menos de conversa e muito mais de compreensão do que está a acontecer.

Nenhuma dessas novas realidades, sejam as relações de dinheiro e poder, ou os novos entendimentos sobre a democracia, irá desaparecer em breve, aconteça o que acontecer no próximo acto dos GJ. O chão mudou sob os nossos pés e faríamos bem em nos perguntarmos sobre quais são as nossas alianças: com o pálido universalismo do poder financeiro ou com aqueles cujos cuidados quotidianos tornam a sociedade possível?

aqui:
https://www.lemonde.fr/idees/article/2018/12/07/les-gilets-jaunes-montrent-a-quel-point-le-sol-bouge-sous-nos-pieds_5394302_3232.html
http://news.infoshop.org/europe/the-yellow-vests-show-how-much-the-ground-moves-under-our-feet/
tempolivre.org/2018/12/09/os-coletes-amarelos-mostram-que-o-chao-se-move-sob-nossos-pes

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