“Lacónica, seca, notícia de jornal, a novidade chegou:
– Sabes?… Fulano foi preso!
Eram dez horas da noite de 24 de Dezembro e senti uma dor aguda cá dentro. É que o preso de momentos antes era um querido companheiro de trabalho, ombro com ombro comigo na mesma oficina.
– Preso?!… Porquê?
Depois o soube. Ia para três anos, em noite de boémia galharda, um desses javalis, a que chamam polícias, vomitara injúrias em nome da ordem para fazer calar a alegria de viver. E ele, o preso de agora, num minuto belo de revolta, embriagado de liberdade – esbofeteou o javardo.
Quase três anos volvidos, outro polícia – ou o mesmo, que todos são incarnação de idêntica, torpíssima, alma – aguardou pacientemente a noite de Natal, esperou na sombra que a vítima fosse despreocupadamente para o trabalho, formou o salto e atirou com ela para um calabouço piolhoso, fétido, alvitante.
E, todavia, o meu companheiro, o que era ombro com ombro comigo na mesma oficina, possuía uma família e um lar, era moço e alegre e até – acaso talvez – tinha no bolso umas cédulas, para comprar prendas e bolos aos sobrinhitos traquinas. E nessa noite era esperado em casa, para consoar, por toda a família, quem sabe se pela noiva também e talvez por uma avó velhinha…
A manápula encardida dum polícia desfazia assim esse castelo de ingénua alegria, punha um vinco de preocupação na fronte encanecida dum pai, enchia de lágrimas de angústia os olhos de irmãs ainda meninas…
E porque senti uma dor aguda cá dentro, amararam-se-me os olhos de lágrimas, como a uma mulher e a minha boca proferiu frases travadas de ódio, como as de um precito.
Queria dizer: Liberdade, Amor… e só me saiam dos lábios palavras desconexas, injuriosas, torpes. A mais suave, recordo-o, era:
– Cães!
Quis ainda evocar a figura doce do Cristo menino, dormindo nas palhinhas; mas a minha imaginação doente de rancor, figurou logo um monstro estranho, caveira com barbas, farda desajeitada e chantalho pingando sangue, a roncar no Presépio, entre os olhares indiferentes da Virgem, os bocejos aborrecidos de S. José e o estercar sem-cerimónia das bestas bíblicas.
Estava alucinado.
***
Foi sob a opressão deste pesadelo que entrei na Cidade.
Um nevoeiro denso, quase sólido, enchia tudo. Não chovia, nem fazia frio; no entanto, o lajedo das ruas era negro-baço, como se fora batido pela água, e uma humidade gélida penetrava a roupa e punha arrepios na epiderme. As luzes das ruas só se distinguiam num perímetro duma dúzia de passos e, amareladas, envoltas num halo frouxamente luminoso, pareciam círios numa câmara-ardente. Ao alto, de lés a lés das ruas, pendiam das frontarias os panos-de-dó da névoa. Larvas negras, curvadas numa submissão fatal, arrastavam-se e eram aqui e ali devoradas pelas bocarras de treva das vielas.
Cheguei a uma praça, onde havia uma igreja iluminada, com cânticos de órgão lá dentro. Entrei. Ó, a fantasmagoria pagã do culto! De tudo quanto impressionou a minha visão, nos escassos minutos que lá me demorei: dalmáticas e casulas fulgindo oiro, altares pingados de luzes, flores queimadas de febre, nuvens de incenso espiralando doidas, multidão negra e compacta, prostrada – só ficou, gargalhando na minha memória, o grupo escultórico da Carne. Ela, formosa; burguesa; veludos, peliças; pernas, embainhadas em seda cor-de-carne, que, na postura forçada a que o arquibanco obrigava, ora se cruzavam. Ora se descruzavam, deixando ver por momentos, acima do joelho, qualquer coisa de lácteo: liga, pele… Ele, elegante; monóculo; Chiado; olhos cravados nesse ponto que ora se mostrava, ora desaparecia, mordendo o lábio inferior ao-de-leve e agitando ligeiramente o corpo num movimento rítmico – o movimento misterioso e eterno…
Passei depois por outra igreja e por uam taberna. Entre portas da primeira, para cá do guarda-vento, um velho alto, hercúleo, tipo de mendigo, com um capote chapeado de remendos, discutia com um ganimedes de opa vermelha de Irmão do Santíssimo, que o empurrava e dizia em falsete:
– Vá-se embora, preciso de fechar a porta, ande!
E o velho, de falas pausadas:
– Ó menino! Deixe-me ficar aqui… Não faço mal nenhum… Até da casa de Deus!…
Da taberna, de portas fechadas, vinha um tinir de copos, uns sons de guitarra, um zumbido de vozes roucas que um riso claro de mulher cortava, dizendo que por ali ia estúrdia grossa. Um fantasma saído dum portal, um polícia de capa de oleado, bateu com os nós dos dedos na porta da taberna e grunhiu:
– Vejam lá se acabam com essa zaragata!
O taberneiro assomou, trazendo já na mão um copo de decilitro de aguardente. O polícia gualdiu sôfrego o veneno – nem ele queria outra coisa – e voltou para o portal, na sombra, pigarreando forte.
***
Engolfei-me na névoa espessa. Respirava a custo. Andei por becos e travessas, sempre sufocado. Subi a um alto. A Cidade, em baixo, era um poço de treva, com laivos sangrentos aqui e ali. Nem uma estrela no alto; no lago sombrio nem uma janela iluminada, dessas que se adivinham ser alcovas de ricos ou mansardas de pobres. Nada. A paisagem do mar largo, em noite sem luar, não é mais soturna.
Voltei ao fundo da cova. Passei por um casarão que foi convento da religião franciscana e hoje é covil de feras. Estava um polícia à porta. Senti gemer. Depois pareceu-me ouvir uma voz conhecida. Era a daquele meu companheiro de trabalho, que fica ombro com ombro comigo na mesma oficina, voz que sempre ouvi vibrar sarcástica, que dizia amarga, revoltada, altiva:
-Liberdade.
Segui. Outro convento, que um guerreiro doido fundou. Debaixo da terra, dos in-paces húmidos, subiam vozes apagadas de monges torturados de jejuns, rezando:
– Liberdade…
Adiante. Um teatro? Não, o Paço dos Estaus. E das masmorras da Santa Inquisição, com o guizalhar de bragas e gargalheiras, vinham vozes oprimidas, protestando, rugindo:
– Liberdade!
Mais uns passos. A boca negra do Pátio do Tronco e entre mulheres vi – não me enganei – o vulto gentil do moço volteiro, barbirruivo e galante, que cantou a Natércia e a Bárbara escrava, murmurando triste…
– Liberdade…
Quis fugir à ronda dos fantasmas. Retrocedi. Trepei para Alfama. Ficou-me à direita o vulto monstruoso da Sé, com a fachada disforme coberta pelos tumores dos andaimes. À esquerda o Aljube e lá de dentro vozes de mulher, chorando:
– Liberdade, Liberdade…
A seguir os Paços do Andeiro. Vi olhos faiscando na treva e ouvi nitidamente um clamor que dizia:
– Liberdade! Liberdade! Liberdade!
Ainda tentei ir abalar as grades daquelas prisões, escancara aquelas portas chapeadas de ferro e gritar aos que estavam lá dentro:
-Vós que tendes família e amigos e que tendes também coração – ide consoar como toda a gente nesta noite consagrada à família e a Jesus menino. Ide em paz. Os vossos crimes – os de quase todos – são tão graves como o daquele meu companheiro de trabalho, que fica ombro com ombro comigo na mesma oficina. Os crimes dos outros – os verdadeiramente graves – não é aí que se curam, é em sanatórios, em oficinas, em escolas. Ide… sois livres!
Vã tentativa! Eu era só na Cidade imensa e na noite escura. Voltei mais triste ainda para o meu tugúrio.
De toda a parte, do fundo das idades e do seio da terra, nos cárceres lôbregos e nos tronos refulgentes, nas bocas do próceres e na bênção dos pastores, o mesmo símbolo, a mesma palavra, a mesma ideia: Liberdade.
E a Liberdade é ainda um mito, uma aspiração, um sonho…
Isso pensava eu, ao recolher a casa, embrulhado em farrapos de névoa, que, semelhante a um véu de crepe, o meu vulto esgarçava na noite. E porque o nevoeiro era como uma mão de bronze, jugulando-me, é que eu, embora me parecesse gritar, só murmurava baixinho – Liberdade! Liberdade!”
J.B.
(Texto publicado originalmente no Suplemento Semanal Ilustrado de “ A Batalha”, em 29 de Dezembro de 1924. Fizeram-se apenas raras atualizações ortográficas para esta republicação)