
Após o início da guerra, muitos dos nossos camaradas em Kiev tornaram-se voluntários ou membros do Esquadrão Anti-Autoritário no âmbito da Defesa Territorial. Neste momento o esquadrão está empenhado principalmente no treino e em operações de vigilância. Quando o inimigo ainda se encontrava na região de Kiev, os elementos da Unidade foram para posições a frente no apoio às Forças Armadas Ucranianas (AFU) participando na vigilância com drones, no transporte de refugiados através dos corredores verdes e atenderam os pedidos de ajuda feitos pelos cidadãos sobre a atividade de grupos de sabotagem.
Falámos com Ilya, um anarquista da Rússia que vive na Ucrânia há quase 3 anos e que participou na revolta de 2020 na Bielorrússia. Sobre a dificuldade de dominar o ofício da guerra, o papel das armas na libertação e as perspetivas políticas para a região.
Vivendo em Kiev, é compreensível que o cenário de guerra te tenha estado próximo. Mas por que razão, concretamente, decidiste integrar o destacamento militar e não te envolveste noutro tipo de voluntariado ou ativismo cívico?
Antes de mais, direi que acredito que todas as áreas de atividade são muito importantes. Trabalho voluntário, trabalho mediático e de organização política, que pode ser realizado fora das estruturas militares. A frente não está apenas na linha de combate, mas em todas as áreas em que as pessoas fazem algo em conjunto de forma a que o movimento anarquista se manifeste e confronte os imperialistas.
No entanto, decidi enveredar pelo caminho militar. Creio que o nosso movimento precisa de ser capaz de fazer frente aos seus adversários com armas. Isto sempre foi importante para mim , fazendo parte da minha perspetiva política e pessoal. Entendo que eu e nós o poderíamos fazer.
Além disso, não foi apenas uma decisão pessoal, mas parte do nosso planeamento coletivo. Após o Ano Novo, o movimento anarquista de Kiev realizou reuniões, onde decidimos o que iríamos fazer, como iríamos coordenar-nos uns com os outros. Nessa altura, decidi que me iria concentrar neste objetivo. E de facto, desde os primeiros dias da guerra, funcionou bem.
Tinhas alguma experiência militar antes disto?
Sim, tinha formação militar básica. Treinámos essas capacidades com os nossos camaradas como parte da nossa abordagem política. E como fomos capazes de organizar o processo de treino quando os confrontos começaram, pude aprender e exercitar muitas capacidades.
É difícil mergulhar na vida militar?
Não é certamente fácil. Mas tínhamos connosco algumas pessoas com as mesmas ideias, que estavam a pegar numa metralhadora pela primeira vez, e todos aprenderam a utilizá-la muito rapidamente. Aqui, como em qualquer outro ofício, tudo depende do interesse e do investimento.
É preciso memorizar muito, mas ao nível básico da infantaria, não reparei em nada que fosse impossível de aprender.
Há uma certa dose de stress físico, não se pode andar o tempo todo, tem de se correr um pouco, cair e levantar-se de novo. Mas isto, mais uma vez, é uma mais-valia, uma questão de treino.
Todas as pessoas com uma saúde média e o desejo de saberem como se faz podem participar com bastante facilidade se estiverem interessados. Por isso, se alguém estiver a se é realista participar, aconselharia a não ter medo, mas a tentar e muito provavelmente funcionará.
Dito isto, dizer que estou totalmente preparado para a guerra seria uma conclusão demasiado arrojada. Estamos aqui, ainda, afinal de contas, na fase inicial. Mesmo dois meses de treino mais ou menos sistemático, não é o tempo que faz com que se possa entrar diretamente na guerra.
Por falar em competências básicas, que poder acha que a milícia tem na guerra moderna, tendo em conta a forte profissionalização do exército?
É claro que um exército profissional de alta tecnologia tem grandes vantagens sobre qualquer guerra popular de guerrilha.
No entanto, as milícias e a guerrilha também desempenham um papel importante. Uma vez que o regime de Putin age como ocupante, a resistência é liderada por muitas pessoas locais que conhecem bem o ambiente urbano e rural. Isto dá-lhes uma grande vantagem.
Além disso, existe o espírito de luta. Se as pessoas estão realmente a lutar duma forma empenhada, como vimos no Curdistão, mesmo um exército de alta tecnologia, muito mais avançado tecnologicamente como era, neste caso, o exército turco, não as desanima.
No entanto, o mais interessante é que qualquer milícia ou guerrilha também se esforça por ser o mais profissional possível. Para o profissionalismo nas cções de guerrilha é preciso procurar formas de obter as mais recentes armas técnicas e ter profissionais que saibam como lidar com elas. Não deve haver a ideia errada de que um guerrilheiro é como um avô insurrecto Kuzmich que levou uma Berdanka, e se escondeu na floresta e por lá anda.
De facto, os exércitos profissionais têm tomado emprestadas muitas táticas da guerrilha. Estas são constituídas por pequenos grupos, pequenas ações furtivas, e retiradas rápidas. Dominar tais táticas de modo a agir com eficácia nesta área é também um grande desafio. Qualquer pessoa que pense seriamente na guerra das pessoas comuns, na guerra de agentes não estatais contra agentes estatais deve pensar sobre isto.
Para além das mencionadas táticas de combate, de que outras formas as estruturas militares populares e anarquistas diferem do Estado e das instituições pró-Estado?
Em primeiro lugar, pelo ideal social em prol do qual existem e combatem. Não tenho a certeza de que possam diferir tanto estruturalmente das forças armadas convencionais. Uma situação militar requer um certo sistema de comando, uma certa hierarquia. Mesmo que tenha de ser temporária e criticada, ela existe e, sem ela, não é claro como possa existir.

Sabemos que “o poder está na ponta da espingarda”. Não se aplica isto também às estruturas armadas anarquistas? Não têm elas, como outras formações armadas, o potencial de impor a sua vontade a outras organizações?
“O poder está na ponta da espingarda”, mas, deixem-me que o diga com toda a liberdade, a espingarda também pode dar à luz o poder do povo. Para mim, a impotência é , se quiserem, num certo sentido, sinónimo também disto. Sempre considerei as armas e, mais amplamente, a violência como um instrumento como outro qualquer. É verdade que muito do poder e da opressão do homem se baseia nas armas e na violência. Mas também é verdade, em parte, que este instrumento deve ser utilizado para esmagar o poder e a opressão. Se este mundo de guerra nos foi imposto, então devemos também ser militantes para defender a nossa ideia social. Não é coincidência que a metralhadora com um punho levantado tenha sido o símbolo de muitas organizações insurgentes. É um símbolo de que o monopólio da violência pode ser retirado ao Estado e aos opressores.
A espingarda nas mãos do povo, neste caso da sociedade ucraniana, que resiste coletivamente à agressão imperial de Putin, não é um símbolo de poder, mas um símbolo de esperança de libertação do poder. Um símbolo de resistência à força bruta.
Mas na realidade a espingarda não está nas mãos do povo ucraniano, mas nas mãos de apenas uma parte do povo, nas mãos do exército.
Não tenho os números, mas pelo que vi aqui com os meus próprios olhos, um grande número de voluntários juntou-se às forças de Defesa Territorial, a todo o tipo de estruturas militares auxiliares e à Autodefesa Local. Parece-me que toda a parte ativa da sociedade ucraniana está agora, de uma forma ou doutra, em contacto com uma metralhadora, com uma espingarda. Vamos ver o que acontece a seguir. Em qualquer caso, esta experiência de autodefesa do povo e de resistência coletiva ao agressor é uma experiência valiosa. Como será implementada no futuro – eu não me atreveria a especular agora.
Bem, então falemos do futuro de uma forma diferente, como pensas que a situação na região , em geral, irá evoluir?
O que quer que seja, é completamente impossível de prever.. Eu, para ser honesto, nunca pensei que esta guerra em grande escala pudesse acontecer.
Infelizmente, acredito cada vez menos que a guerra possa acabar rapidamente. Ou entrará numa fase prolongada, ou haverá tentativas de Putin em avançar de alguma forma mais massiva, ou tentativas do lado ucraniano para contra atacar ativamente.
A guerra conduzirá a uma maior desestabilização na região. Isto promete grandes problemas para as populações Ao mesmo tempo, a desestabilização dos regimes autoritários de Lukashenko e Putin é possível. O que, naturalmente, abre a possibilidade de mudança para melhor nos nossos países. Nesta situação, os anarquistas da Bielorrússia e da Rússia precisam de se preparar para participarem ativamente no que vier a acontecer.
Porque pensas que esta guerra é capaz de minar os regimes de Lukashenko e Putin?
Por causa das sanções, por causa das grandes perdas, tanto quanto se pode julgar agora, por causa dos enormes investimentos na guerra, por causa dos danos de reputação. Talvez hoje haja algum entusiasmo na Rússia em torno de Putin, mas é óbvio que neste momento os objetivos não estão a ser alcançados, estão a ocorrer perdas, e estão a ser gastos recursos gigantescos.
E o regime de Lukashenko, por um lado, está intimamente ligado ao de Putin. Se o regime de Putin deixar de existir, então a principal base de apoio de Lukashenko desaparecerá. Em segundo lugar, a ocupação é também levada a cabo utilizando o território bielorrusso. Tanto quanto sei, isto causa uma revolta adicional contra Lukashenko na própria Bielorrússia. Isto encoraja as pessoas a organizarem-se para uma ou outra forma de luta política. Por exemplo, a diáspora, que já é muito anti-Lukashenko, está a ficar ainda mais organizada e mobilizada. Sabemos que, por exemplo, há muitos voluntários bielorrussos na Ucrânia. Penso que isto pode tornar-se um fator no colapso do regime a qualquer momento.

O que pensas que as pessoas na Bielorússia deveriam fazer nesta situação? Aqueles que querem que a guerra e os regimes autoritários acabem o mais depressa possível, mas que não têm qualquer ligação com pessoas organizadas nem nenhuma experiência de luta?
O algoritmo é o mesmo: preparação, organização, e ação. Mesmo que as pessoas não sejam membros de um grupo político, porque todos vivem na clandestinidade e é impossível ter contactos diretos.
É necessário dominarmos o conhecimento, para nos prepararmos para a ação. Distribuir panfletos e fazer graffiti sé útil, se as pessoas o puderem fazer, então que o façam. Mas na Bielorrússia, a sociedade terá de lutar contra o regime para se defender. Temos de estar preparados para isso, para um confronto direto.
É necessário organizarmo-nos, unirmo-nos a pelo menos várias pessoas de confiança. De confiança, para que se possa confiar uns nos outros. E poderão ser 2 pessoas, 3, 5.
E, é claro, ação. Qualquer contributo neste sentido agora, especialmente na Bielorrússia e na Rússia, é incrivelmente valioso. Por exemplo, a guerra dos caminhos-de-ferro (destruição, por sabotagem das linhas, para que o material de guerra russo não passe para a Ucrânia). Isto é algo que qualquer pessoa aqui na Ucrânia sabe que está a acontecer. Estávamos a falar com uns tipos da Guarda Nacional há 5 minutos, e há um que diz: “Mas na Bielorrússia, as pessoas queimaram muitos centros de distribuição,, fizeram sabotagens. Ajudou muito”.
Agora é definitivamente tempo de agir. 24 de Fevereiro, depois deste dia, não sei o que se pode esperar. Precisamos de combater os regimes ditatoriais. Se só o podermos fazer sozinhos, façamo-lo sozinhos. Mas por todos os meios, lutem. Espero que nos possamos juntar todos e coordenar para que esta luta popular possa trazer resultados políticos concretos.
Boris Engelson para pramen.io
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