
Desde o início da guerra na Ucrânia que o Portal Anarquista defende o fim da guerra e considera que, num conflito deste género, nunca os trabalhadores e o povo em geral sairão como vencedores. No entanto, também percebemos que a ocupação da Ucrânia pela Rússia significará um aumento da violência sobre as populações, nomeadamente dos sectores mais activos e progressivos da sociedade ucraniana. Por isso, defendendo todos os que num ou noutro dos lados recusam a guerra, desertam ou fazem actos de sabotagem anti-guerra, o Portal Anarquista considera também que os anarquistas ucranianos que decidiram combater e defender as casas, as cidades, os territórios em que habitam e em que vivem, merecem todo o apoio dos libertários. Não foi a Ucrânia que invadiu a Rússia. Foi a Rússia que, unilateralmente, invadiu a Ucrânia. A guerra que os ucranianos estão a fazer é uma guerra de resistência contra um invasor externo. Por isso, em todos os casos em que os anarquistas ucranianos decidiram pegar em armas e defender-se, tiveram e têm o nosso apoio e solidariedade. Tal como aqueles que apelam à paz e à necessidade de uma saída negociada do conflito, sem que isso tenha que significar a total entrega do território ucraniano à Rússia, de forma a saciar a sua vontade imperialista.
MENSAGEM DE ANTON TSAK PUBLICADA A 17/1/2023 NO JORNAL FRANCÊS “LE MONDE LIBERTAIRE”
Artigo escrito por um camarada francófono, que está na Ucrânia desde o início da guerra para colaborar na “Operação Solidariedade” e depois nos “Coletivos Solidariedade”.
Olá camaradas,
Tentarei apresentar-vos aquilo que se pensa atualmente na Ucrânia. Como sabem, a Rússia de Putin lançou uma invasão total em fevereiro passado e, como alguns também saberão, já em 2014 tinha acontecido uma anexação de zonas do leste da Ucrânia também pela Rússia.
O que é mais raro saber-se é o facto de existir um movimento libertário na Ucrânia, e isto depois de 2014, quando a sociedade ucraniana optou por se aproximar da Europa e afastar-se da Rússia, após os acontecimentos conhecidos como Euro-Maidan. No movimento antiautoritário, discutiram-se as diferentes formas de reagir perante uma invasão que se sabia ir acontecer, mais tarde ou mais cedo. E que, por fim, começou a 24 de fevereiro de 2022.
As ideias pacifistas de vários anarquistas (aqui ), confrontadas ao longo do tempo com a realidade daquilo que é uma invasão total, um desejo de destruição tão poderoso, que tornaria qualquer ideia de sobrevivência como impossível a não ser pelo combate. Como pensar, então, a anarquia, a sociedade, o povo, a nação, o Estado? Que lugar poderiam os nossos camaradas ocupar nesse combate? Diferentes posições surgiram, ligadas a diferentes cenários, seja a derrota do exército ucraniano ou ir-se combater na frente de guerra..
O treino (de alguns) decorreu nos últimos anos, para poderem actuar como guerrilheiros, em caso de derrota do exército ucraniano e na possibilidade de viverem num país sob ocupação. Outros já se estavam a preparar, ou já tinham entrado, nas fileiras do exército. Não houve decisões unânimes, mas discussões e divergências. Não se escolhe sempre o campo de combate e o exército russo foi quem escolheu a guerra de artilharia. Uma guerra de fronteira desde que a invasão total falhou.
A invasão foi repelida graças à resistência ativa de toda a população, lembramo-nos da chuva de coquetéis molotov, cujo modo de preparar foi divulgado diretamente pelos meios de comunicação, para além de manuais que ensinavam como proteger os bairros. Do mesmo modo tinham sido criadas para uma ocasião como esta, alguns anos antes, formações locais do exército, nos bairros e aldeias, constituídas por civis. Recordamos as manifestações nas zonas por onde passou o exército russo, que continuaram, apesar dos fuzilamentos, das situações desesperadas, e de pessoas a utilizarem a sua última arma de luta – o seu corpo.
Hoje já é tarde e o passado nunca será diferente, a não ser que seja reescrito por mãos habilidosas que escondam a crueldade – recordemos Bucha e Irpin, as ordens dadas para chocar e provocar o medo. Mas os ucranianos não fugiram diante do medo. Saíram mais fortes, ultrapassando todas as probabilidades, e acompanhados por este pensamento: nunca mais. Temos que fazer os russos entenderem que nunca mais.
Escrevo estas linhas um dia depois do bombardeamento que destruiu um prédio em Dnipro, no leste, no sábado, e que matou pelo menos 35 pessoas, incluindo duas crianças, e dezenas de pessoas ficaram feridas. Trinta e nove pessoas foram salvas, 75 ficaram feridos e o destino de 35 outros moradores do prédio é desconhecido neste momento. Nunca mais.
Na realidade, muitos russos estão na guerra, obedecem a ordens, ameaçam todas as vidas à sua frente. De momento não contamos com nada para além das nossas próprias forças, com as dos nossos aliados, para acabar com essa barbárie. Se a Rússia ocupasse a Ucrânia, se parássemos de matar essas hordas de soldados russos, então esses mesmos russos matariam todos os soldados e todos os ativistas políticos na Ucrânia.
“Pergunta-se aos russos “como é possível”, após três décadas de política imperial da Federação Russa (e, antes, da URSS e do Império Russo), que os soldados do novo império marchem para os países vizinhos para conquistar novos territórios e escravizar novos povos? Como é possível que durante uma guerra sangrenta alguém se preocupe mais com o encerramento do McDonald’s do que com o bem-estar e a segurança dos seus vizinhos? Como é possível que os russos falem ao mundo inteiro sobre o sangrento regime de Putin, mas muitos, em toda a sua vida, nunca tentaram lutar contra o regime? Como é possível que num país de 144 milhões de pessoas, apenas algumas dezenas de milhares (na melhor das hipóteses) venham protestar?” (aqui)
Também na Rússia existem sabotadores, que estiveram e estão cientes do que está acontecer, encontram-se apoiados pelo grupo BOAK , e estes camaradas, embora não possam parar sozinhos a máquina de guerra russa, estão a fazer a sua parte nesta luta em que estamos empenhados. Saudamos o seu trabalho.

É claro que também estamos a pensar nos nossos camaradas na Bielo-Rússia e estamos felizes em ouvir as notícias de sabotagens e recusa em combater. As prisões estão tristemente cheias de ativistas, e gostaríamos de poder ajudar na sua libertação, e quem sabe, talvez tenhamos essa oportunidade.
Encontramos inspirações no passado: Makhno, Taratuta, Nikiforova, tantas histórias de lutadores ilustres, mortos em batalha ou exilados. Muitas vezes os anónimos, todos esses militantes anónimos, são esquecidos e são criados mitos à sua volta, como a história dessa bandeira que agora é hasteada como a dos Makhnovistas e que certamente nunca foi (aqui), mas a de um grupo nacionalista ucraniano, com o qual tinha havido uma cooperação estratégica em tempos de guerra. A história parece repetir-se quando queremos simplificar o que se passa à nossa volta. Mas a história não se repete. E, por enquanto, participar das fileiras do exército regular é a nossa melhor opção. Como anarquistas, apoiar uma sociedade da qual fazemos parte, da maneira mais eficaz, é a nossa única preocupação actualmente. Ao lutar contra a nação russa, acreditamos que estamos a trazer mais liberdade para a região. Juntamente com nossos camaradas da Rússia e da Bielorrússia, procuraremos como efetivamente enterrar o nacionalismo russo – o imperialismo. A vitória dos ucranianos é um dos passos necessários para esta utopia.
Não estamos prontos para nos exilarmos de novo nos vosso países. Quem sabe se acontecerá, mas não queremos. O que queremos é a vitória total sobre o exército russo. A queda do império, mas, desta vez, será preciso acabar o trabalho e questionar a própria cultura.
Se alguém nos quiser vir ajudar existem várias possibilidades, como o ingresso na legião estrangeira do exército ucraniano, caso já tenha experiência em combate. Como voluntário, há oportunidades de ajudar na frente, sem se alistar nas fileiras do exército. Ou se desejar trazer ajuda humanitária, pode comunicar através de um simples e-mail com os Coletivos Solidariedade para conhecer as necessidades e as possibilidades que possam existir.
Ouvimos que existem algumas pessoas que não querem que sejam enviadas armas para a Ucrânia. Essa forma de pensar baseia-se naquilo que é uma preciosidade do pensamento europeu, onde, sim, há 70 anos, países que estiveram em guerra durante séculos, entenderam que, se continuassem a lutar entre si, se aniquilariam. Só que hoje os ouvidos frágeis de gerações que não conheceram a guerra, descobrem que ela não os esqueceu. E que ela surge mais próximo do que os dirigentes políticos gostariam que se soubesse. A diplomacia e as ameaças não têm poder. E os vossos apelos à paz terão de ter em conta os primeiros interessados.
O bluff de Putin sobre o uso de armas nucleares já não funciona. E o exército russo está em má forma. Mas a guerra certamente ainda será longa, infelizmente. E certamente perderemos mais camaradas.
O internacionalismo hoje, o apoio que podemos esperar dos nossos camaradas, bem o vimos e entendemos, pelas somas enviadas para o equipamento dos camaradas antiautoritários. As despesas são constantes, os carros são destruídos e buscamos soluções para um período longo. Em troca, esperamos poder contribuir com a nossa experiência com camaradas de todo o mundo.
Gostaria aqui de enviar um pensamento de solidariedade aos iranianos, que estão a tentarem libertar -se dos seus tiranos. Lembremo-nos que, certamente, ainda irão acontecer milhares de mortes, que o preço será muito alto, é preciso nunca esquecer. Desejo que experimentemos o fim do regime instaurado por Khomeini e do sistema que ele representa. E desejo-lhes coragem e perseverança.
Os meus pensamentos vão também para nossos camaradas na Síria e no Curdistão que ainda estão a pagar o preço pela liberdade depois de mais de 50 anos de combate, no nosso tempo.. Não perdemos de vista a luta que vocês estão a conduzir. E sempre estaremos ao vosso lado seja em pensamento ou fisicamente.
Faremos o possível para lembrar aos ucranianos a solidariedade demonstrada nos últimos meses e para prometermos que, quando tivermos a oportunidade, poderemos retribuir-vos o vosso apoio. Neste momento, precisamos de vocês e não tememos nada, a não ser que a nossa luta seja esquecida.
Solidariamente
Anton_Tsak,
16.01.3023 – Harkiv F
Respeito pelas posições de resistencia e luta. Vejo com alguma preplexidade que nos debates a opção pela solidariedade entre trabalhadores seja esquecida e a questão nacional valorizada. A invasão imperial parece ter deixado se ser um conflito entre impérios, onde os trabalhadores não lutam pela autonomia.
Republicou isto em Museu da Autonomia.