O ódio, as meias palavras, as palavras directas, a mentira e as calúnias que nos últimos dias têm sido lançadas contra os enfermeiros, provindas do Governo, dos sectores da esquerda e também da direita (mas destes não era de esperar outra coisa), revelam, antes do mais, a eficácia dos novos conflitos que se desenrolam à margem dos sindicatos tradicionais e do movimento sindical oficioso representado pelas duas principais centrais sindicais. As greves cirúrgicas dos professores no ano passado tiveram também muito a ver com o aparecimento de um novo sindicato que deixou de pactuar com o “simbolismo” das acções levadas a efeito pelo sindicalismo oficial (mais comprometido com o calendário partidário do que com a agenda e as reivindicações dos trabalhadores); depois pela greve vitoriosa dos estivadores, suscitando apoios variados que impediram a requisição civil que estava a ser exigida pelos sectores mais reaccionários; e agora com os enfermeiros.
Sobre esta greve basta estarmos conscientes de três ou quatro premissas para vermos até onde chega a hipocrisia política e governamental.
- A crescente invocação de que a greve afecta e perturba a vida em sociedade, podendo trazer graves prejuízos, nomeadamente pondo doentes em risco de vida, é uma verdade de la palisse. Todas as greves – que o são e não meras manifestações políticas, manobradas pelas máfias sindicais – procuram efectivamente provocar prejuízos e transtorno ao regular funcionamento das empresas e, em último grau, da sociedade, a fim de fazer com que os patrões e os governos aceitem as suas reivindicações. Não é isso que procura uma greve dos transportes, por exemplo, ou qualquer outra? E que dizer do risco de vida: compete aos serviços garantir que não haja um risco acrescido (já agora as listas de espera também são um risco acrescido para os utentes, mas elas aí continuam a engrossar), seja através dos serviços minímos acordados, seja através de transferências para outras unidades que não estejam em greve
- A invocação do crowdfunding como apoio financeiro à greve é apenas mais uma calúnia repetida até à exaustão. O governo e toda a esquerda politica, tal como o sindicalismo oficial, dizem e repetem, sem provas, de que o dinheiro recebido através do crowdfunding pelos enfermeiros tem origem na medicina privada para dar cabo do SNS. Se quisessem punham a justiça a investigar. Mas não há uma única prova de que isso esteja a acontecer. E, em qualquer pais do mundo, seja por que meios for, a existência de um fundo de greve (houve tempos em que muitos assaltos a bancos se destinaram a essa finalidade, em Espanha e noutros países) é essencial para que essas greves possam ser eficazes, mantendo-se o tempo necessário para que o patronato ou o governo-patrão cedam. A hipocrisia política chega ao cúmulo do PCP, num dos seus últimos comunicados contra esta greve, vir dizer que “alguns enfermeiros, estão a ser usados e pagos, com centenas de milhar de euros, cuja origem pode estar em grupos privados da saúde beneficiários directos da transferência das operações cirúrgicas”. Pode estar – diz o PCP, sem nenhuma prova e alinhando na campanha de calúnias proveniente até dos sectores mais insuspeitos contra a greve dos enfermeiros. Já agora: uma greve do sector público dos transportes também fomenta e é usada para fortalecer o sector privado?
- Por outro lado, a violência de que a bastonária da Ordem dos Enfermeiros tem sido alvo é completamente desproporcionada. Se esta fosse uma greve da bastonária (sabendo-se até do seu posicionamento político pessoal) esperar-se-ia uma adesão desta dimensão? Quando a greve se desenrola da forma como todos sabem que se está a desenrolar, afectando os serviços na sua globalidade, é porque a adesão não se limita a um pequeno grupo, mas sim ao conjunto da classe em causa e aos sectores que ela pretende mobilizar.
- Ao governo, que também é patrão, cabe negociar. Não caluniar, nem agir como qualquer patrão de vão de escada, que é aquilo que tem estado a fazer. Aos partidos – e ao PCP, em especial, mas já lhe conhecemos as manhas desde o boicote à greve da TAP poucos meses depois do 25 de Abril de 1974, considerando que qualquer luta que não controla é uma “má luta” e uma “aliada objectiva da reacção” (ontem) ou o “ descontentamento e as reivindicações dos enfermeiros têm sido usados para pôr em causa o SNS e facilitar os lucros dos grupos privados da saúde” (hoje) -, apenas e só preocupados com a contabilidade eleitoral, deviam-se abster de caluniarem, sem qualquer tipo de provas, esta ou outra luta qualquer saída das estruturas e da decisão dos trabalhadores.
Da nossa parte, a posição é clara. Qualquer classe ou grupo de trabalhadores – sobretudo os que sofrem maior pressão social e patronal, como é o caso dos enfermeiros – que decida, de forma colectiva e empenhada, prosseguir a luta por mais e melhores direitos e regalias, ter-nos-à, aos anarquistas, do seu lado. Estamos certos que daí advirá também melhorias profundas e generalizadas para os utentes e para o conjunto de toda a sociedade.
Estivemos antes de forma empenhada com os professores, os estivadores e outros sectores que passaram das “lutas simbólicas” a luta efectivas, com sentido de vitória, e não apenas para cumprirem calendários partidários.
Por isso, hoje também estamos, lado a lado, empenhados e solidários com os enfermeiros e acreditamos plenamente que a sua luta é também a luta em defesa do SNS, que necessita ser melhorado, remodelado, mas, sobretudo, reforçado.
luís bernardes