(texto da intervenção do ilustrador Nuno Saraiva aquando da apresentação na Biblioteca Nacional do livro “Renda Barata e outros cartoons de Stuart Carvalhais n’A Batalha”, uma co-edição entre a Chili com Carne e A Batalha.
Nuno Saraiva*
Se não são conhecidas palavras ou depoimentos da parte de Stuart Carvalhais sobre a sua curta mas muito activa colaboração no A BATALHA e sua envolvencia com os anarco-sindicalistas, o seu silêncio deve-se muito provavelmente à enorme violência que se seguiu ao fecho e destruição das instalações do jornal A BATALHA.
Contextualizando, muitos militantes anarco-sindicalistas foram presos no Campo de Concentração do Tarrafal, entre os quais Mário Castelhano, o seu último redactor principal, que ali morreria, muitos foram deportados para África e posteriormente tratados como terroristas a abater (o atentado a Salazar de 1937 foi durante muitos anos anos atribuído aos anarco-sindicalistas, numa versão que omitia o papel do PCP). Todo este cenário amedrontava, aconselhava calar a veia critica e satírica de um cartunistas como Struart Carvalhais, opção absolutamente compreensível, sabendo o que sabemos hoje. A nova policia política vigiava e sabia bem que o boémio desenhador não apreciava policias.
Stuart foi um artista não-alinhado com o regime, em permanente conflito com o Estado Novo, mas cauteloso. 10 anos depois do fecho da Batalha, quando publica em 1939/40 as Aventuras do Quim e João Manuel no Semanário Humorístico Sempre Fixe, uma banda desenhada passada no cenário da Segunda Guerra Mundial, Stuart faz a resistência e crítica que pode, vigiado pela censura. Obrigado a alinhar com o salazarista alinhamento neutral, demonstra simpatia com os ingleses e faz troça com Mussolini e com Hitler mas essas vinhetas desaparecem nas páginas publicadas.
Stuart sofre aquilo que parece ser uma Pena, um Castigo por se ter descaradamente assumido como um colaborador dos anarco-sindicalistas dos anos 20. Apesar de publicar com frequência, a sua visibilidade enquanto artista é escassa, rebaixada. Prova-o a sua única exposição individual realizada na Casa da Imprensa, em 1932.
As páginas ilustradas apresentadas neste livro “Renda barata e outros cartoons de Stuart Carvalhais n’A Batalha”, ajudam-nos a conhecer um Stuart reactivo, revolucionário e sem papas na língua. Mesmo apesar de não conseguir deixar de desenhar belas mulheres que se parecem todas sósias das actriz Louise Brooks, com as suas belas e eróticas pernas, Stuart desenha aqui a miséria, a pobreza, as injustiças sociais como raramente ou nunca mais um ilustrador português se atreverá a realizar, até aos dias de hoje.
Mas é, na minha modesta opinião, nas ilustrações críticas à Guerra que a vizinha Espanha infligia neste ano de 1925 em Marrocos, que Stuart se acusa políticamente. São vários os cartoons que focam este tema da Guerra de Marrocos, mas fixo-me naquele em que dois chefes militares (Rivera e Lyautey) tecem observações sobre uma batalha (uma batalha militar, bem-entendido). Tem como título “Selvagens…”.
A guerra era a Guerra do Rife também chamada de Segunda Guerra Marroquina, que já durava desde 1920 entre a potência colonial Espanhola, apoiada pela França, contras as tribos Berberes.Lyautey foi o primeiro governador do “Protetorado Francês em Marrocos” e considerado o construtor do império colonial francês.
E Rivera era Miguel Primo de Rivera (o pai do futuro fundador da falange espanhola), este Primo de Rivera, militar, nacionalista e autoritário, tinha encabeçado em 1923 um golpe de Estado, suspendendo a Constituição espanhola, dissolvendo o Parlamento e implantando uma ditadura com a conivência do rei Afonso XIII. Era o Ditador de Espanha à data da publicação deste cartoon.Ora, Stuart e a redação do A BATALHA tinham fortes razões para antipatizar com Rivera que durante os anos da sua Ditadura Militar (1923-1925), perseguiu de forma violenta todos os anarquistas espanhóis cujo sindicato , a CNT – Confederación Nacional del Trabajo, foi por ele declarado ilegal.
Por consequência da repressão do governo de Primo de Rivera, os anarquistas espanhóis (com os portugueses) criaram a Federação Anarquista Ibérica com sede transitória em Lisboa, por causa das condições adversas para os anarquistas em Espanha e tinham vontade em convocar – logo que possível – um Congresso Ibérico.
Mas pouco depois veio o golpe de estado militar do 28 de Maio de 1926 em Portugal – a porta aberta para a longa ditadura de Salazar.Nunca mais Stuart confrontará o sistema como fez nas páginas do A BATALHA, a denuncia das injustiças sociais, a ganância dos arrendatários, a violência policial, o racismo e o colonialismo. Mas simplicidade poética e humanista de Stuart resiste nas centenas de desenhos, páginas de banda desenhada, pinturas, fotografias e cenografias que realiza até morrer, no ano de 1961.Alguém disse um dia que a História nunca se repete.
“Renda barata e outros cartoons de Stuart Carvalhais n’A Batalha” leva-me – enquanto cartunista e ilustrador dos dias de hoje – a suspeitar o contrário.——-Nuno Saraiva,
Na apresentação do livro “Renda barata e outros cartoons de Stuart Carvalhais n’A Batalha”, Co-edição A BATALHA / CHILI COM CARNE, na Biblioteca Nacional de Portugal, 10 de Dezembro de 2019.(Um grande obrigado ao Marcos Farrajota, editor do arriscado e da subversão, pelo convite).
* aqui: https://www.facebook.com/nunosaraivailustrador/photos/pcb.1446461822184490/1446461508851188/?type=3&theater