Dórdio Gomes – Cabeça de Ceifeiro Alentejano
O «Estado de Sítio» de 1912 às portas da «revolução social»?
«O dia 13 de Março é, pois, uma data que marca
o divórcio da República com o proletariado»
– In jornal Terra Livre, n.º 6, 20 de Março de 1913
©Joaquim Palminha Silva*
No mês de Janeiro de 1912, uma escaldante greve estalou em Évora, na sequência da recusa dos agrários em quererem pagar aos assalariados rurais os preços da jorna (de sol a sol!) até aí praticados.
Atente-se bem: – Não havia sequer reivindicação para aumento de salário, mas apenas a defesa da manutenção do antigo que, entretanto, os latifundiários queriam reduzir, remontando ao tempo da Monarquia!
O Governo da República “esquecera-se” de que havia operários e uma série de questões que eram toda a questão social, por conseguinte, pela inépcia, pela violência, pela repressão de direitos e garantias, pela prisão e deportação de centenas de operários vai provar paulatinamente que a questão social foi para si um caso de subversão e, como tal, uma vez criminalizada, deveria ser tratada em consequência. O «divórcio» entre o operariado e a República (ideia que implica um “casamento” de que não estou certo ter acontecido) não é consumado de forma brutal em 1912, dado que vem do ano anterior.
A 19 de Março de 1911, os efectivos militares da ex-Guarda Municipal da Monarquia, baptizados entretanto de Guarda Nacional Republicana (com activistas maçónicos nas fileiras?) (1), haviam feito rolar, nas calçadas de Setúbal, a vida de dois populares, Mariana Torres e António Mendes, participantes num cortejo pacífico de operários conserveiros grevistas, que desfilavam na Avenida Luísa Todi.
O regime da República que havia esquecido a questão social, ensaiava agora o Poder de Estado em termos “modernos”, supostamente menos “paternalistas” do que no tempo da Monarquia, policialmente mais selectivo, mais atento às movimentações operárias e, nesta ordem de ideias, disposto a reduzir as liberdades democráticas “se fosse caso disso”.
Nesse mês de Janeiro de 1912, enquanto os trabalhadores deliberaram proclamar a greve geral de protesto, o Governador Civil de Évora, o cidadão António Paulino de Andrade, promoveu algumas medidas de policiamento à cidade, incluindo a proibição de entrada intra-muros dos trabalhadores rurais dos arredores, acampados nos arredores, e o encerramento de algumas sedes locais de Associações de Classe (sindicatos), (2). Estas medidas colocaram automaticamente o regime republicano ao lado dos grandes agrários (de resto, partidários da Monarquia).
E a alternativa do diálogo? – Tal opção não ocorre ao patronato latifundiário, nem aos “doutores” do novo regime. Mas veio à ideia dos trabalhadores rurais de Évora que, apesar de tudo, ainda acreditavam no “bom-senso” dos “jacobinos”… Talvez esperassem do governo da República a arbitragem do conflito…
Os delegados da Associação de Classe do Trabalhadores Agrícolas de Évora, nomeados em assembleia geral, seguem para Lisboa a tentar sensibilizar o governo central e, para Évora, veio o deputado Inocêncio Camacho (3), com o objectivo de averiguar a situação e apresentar o respectivo relatório ao governo.
Largo e Porta de Avis cerca de 1910.
No dia 24 de Janeiro de 1912 acontece um sangrento percalço em Évora: – Uma patrulha da GNR decide dar ordens de dispersão a um grupo de trabalhadores que se encontravam na rua. A troca de insultos faz com que os ânimos se exaltem e, naturalmente, a
GNR armada faz fogo sobre os
trabalhadores desarmados, de que resulta um morto e vários feridos com menor ou maior gravidade entre os populares.
Entretanto, o Governo é informado pelo deputado Inocêncio Camacho que, em síntese, conseguira averiguar quanto a greve geral dos trabalhadores agrícolas em Évora havia saído de um incitamento [descoberta brilhante!] dos seus «chefes» aos «aldeões», tendo declarado estes últimos às populações que «podiam saquear». Informava tal o deputado, sem contudo apresentar garantias fiáveis sobre a confirmação desta afirmação. Claro que, compulsado o relatório do deputado e a imprensa da época, ainda hoje se está para saber quem, como, quando se disse para saquear… em Évora. Enfim, o segredo morreu com Inocêncio Camacho.
Devemos referir que o relatório do deputado Inocêncio Camacho apareceu publicado no jornal O Século! O seu conteúdo exasperou dirigentes e militantes destacados do movimento operário da capital (então de formação anarco-sindicalista), de tal ordem eram as patranhas, as alucinações e os disparates. Por exemplo, a determinado passo dizia-se que o movimento grevista era manipulado por «elementos reaccionários», de «mistura com anarquistas» e, veja-se, «adversários pessoais do sr. governador civil»…Como se pode constatar, a greve geral em Évora, segundo o relatório publicado pel’O Século, seguia de perto as descrições do jornal do Partido Republicano de Évora, A Voz Pública.
O governo da República e os seus representantes em Évora, os “doutores” e “jacobinos” de ontem, davam agora ordem aos militares armados para dispararem, se necessário, contra a organização pacífica e desarmada dos trabalhadores rurais e, assim, “irrefletidos”, acabaram por escolheram a “barricada” do patronato agrário alentejano que, de resto, continuava monárquico!
Do caderno reivindicativo dos trabalhadores rurais de Évora destacam-se algumas alíneas: – Liberdade para todos os companheiros entretanto presos pelo Exército, às ordens do governador civil de Évora; reabertura da sede da Associação de Classe (sede no Largo de S. Domingos) na cidade; demissão do governador civil que se manifestara parcial, e como que mandado pelos latifundiários.
De todas as reivindicações o governo dos “doutores” apenas satisfez a seguinte: reabertura da Associação em Évora. Todavia repare-se nesta forma “siciliana” de actuação governamental: – Para autorizar a reabertura da sede da Associação dos Trabalhadores Agrícolas de Évora, o governo central exigia como “fiança”, e entregues ao poder judicial, a prisão de dois operários, de preferência dirigentes!
O rebaixamento de salários era impensável e a derradeira atitude do governo escandalosa! O proletariado de Lisboa entendeu que estavam a medir forças com a sua organização de classe e, de experiência em experiência, os “doutores” maçónicos deixavam claro que haviam implantado um novo regime, mais ou menos democrático, mas sem dúvida burguês e amante da propriedade privada dos meios de produção, não a República Social de que o movimento operário organizado tanto esperava.
A greve geral de solidariedade para com o operariado agrícola de Évora é “decretada” por inúmeras Associações de Classe de Lisboa e Setúbal (Eléctricos/Carris, Ferroviários, Fragateiros, Tipógrafos, Corticeiros, Cª. União Fabril do Barreiro, Conserveiros de Setúbal, etc.).
O caso é que os “doutores” do Partido Republicano Português estavam habituados a verem muitos operários juntos, mas apenas para apoiarem o seu programa:- A queda da Monarquia!
Nunca por nunca imaginaram tanta gente junta a clamar justiça e pão! Nunca imaginaram a paralisação do trabalho nas fábricas, oficinas e trabalhos agrícolas do distrito de Lisboa e Setúbal. Os “doutores” assustaram-se!
Assustaram-se e decretaram o «estado de sítio»! O governo declarou a suspensão de garantias constitucionais, solicitando aos cidadãos para «estarem nas suas casas ao toque de recolher»!
Os “doutores” do governo, por um momento, pensaram que poderiam “meter na ordem”, a “toque de caixa”, o mundo do trabalho?
No dia 31 de Janeiro de 1912, na Rua do Século (Lisboa) forças militares, e civis da organização maçónica armada denominada «Carbonária», tomaram de assalto a União dos Sindicatos. Centenas de detidos (homens e mulheres) são remetidos para bordo dos navios de guerra da Marinha: «D. Fernando», «Pêro de Alenquer» e «5 de Outubro».
A reportagem fotográfica publicada na revista Ilustração Portuguesa (5 e 19 de Fevereiro de 1912) da autoria do repórter Josuah Benoliel não deixa margens para dúvidas, sobre a violenta repressão despoletada!
Entretanto, as rusgas da polícia (que se iniciava assim na perseguição política e social!) tanto em domicílios, como em locais de reunião de trabalhadores sindicalizados de Lisboa, prendendo a esmo, conseguiu aprisionar cerca de 700 pessoas…
Estão aí as fotografias: – Os trabalhadores presos no encerramento da União dos Sindicatos, a 31 de Janeiro, aos gritos de protesto, entre alas de tropa, percorrendo a Baixa Pombalina, entoando a Internacional!
Para não faltar nenhum pretexto político a justificar o «estado de sítio», o governo acusou os trabalhadores de “manobrarem” em concertação com os monárquicos e, para dar a tudo o acinte que faltava, sem escrúpulos e sem noção do ridículo, os “doutores” do regime prenderam o último ministro dos Estrangeiros do governo da Monarquia, José de Azevedo Castelo Branco, que não havia emigrado para o estrangeiro e se encontrava acamado, gravemente enfermo!
O comando militar, a solicitação do governo, tomou conta da cidade de Lisboa: Guarda Fiscal e Republicana, Cavalaria, Marinha e Polícia, com o seu infatigável comandante nas perseguições a sindicalistas, capitão Câmara Pestana, patrulhavam Santo Amaro, a Associação Têxtil de Alcântara, a União das Associações e Casa Sindical na Rua do Século, o Rossio, as Escadinhas do Duque, o Largo do Calvário, os Correios e os Ministérios no Terreiro do Paço, o Largo Camões e de S. Domingos.
Os trabalhadores agrícolas de Évora e, depois, os de Lisboa, Setúbal, Almada Moita, Barreiro, Aldeia Galega, haviam esperado dos “doutores” do governo uma arbitragem imparcial e, para tal fim foram a Lisboa conferenciar; o proletariado de Lisboa e arredores imaginou a greve geral de solidariedade para com os trabalhadores eborenses, mas os “doutores” do governo não se sentiam amarrados a estas questões sociais, de que tanto falaram no tempo da Monarquia. A República não era Social e Democrática, o regime republicano, pouco depois com Afonso Costa como 1º ministro, acabaria por ser conhecido e reconhecido sob a alcunha de «racha sindicalistas».
Plataforma superior da Estação de Comboios do Rossio guardada por uma força militar (Ilustração Portuguesa, 5/2/1912). Repare-se que «essa força militar» vai tratando de meter uma bala na câmara da espingarda de fabrico alemão, a «mauser»…Portanto, pronta a disparar e a matar!
Duas fotos com origem na mesma fonte: grupos de trabalhadores entre alas de tropa armada, em Belém e em direcção à prisão no forte de Monsanto, e na doca do «Bom Sucesso» (Lisboa).
Pela sua mobilização, muito embora desordenada, pela sua rápida intervenção junto do Poder e pelo imenso “aparelho” da solidariedade proletária, alvejados com o «estado de sítio», os trabalhadores portugueses pareciam dizer aos amnésicos “doutores” do novo regime e governo: «Se fizemos tudo isto, a culpa não é nossa mas dos senhores, que passaram a vida, antes de 5 de Outubro de 1910, a aproveitarem a nossa disponibilidade, a chamarem reaccionários aos monárquicos e a elogiarem o povo, embora solapadamente, fosse preparando o País à vossa imagem e semelhança. Não vos acreditamos nunca, mas colaboramos. Eis o nosso caso: vimos apresentar a factura do nosso sangue! Paguem-nos em direitos o que nos devem moral e politicamente!».
Trémulos e apavorados, os doutores mandaram para as ruas as fardas armadas e prontas a disparar. Era preciso afastar da República aquele parente pobre!
Em janeiro de 1912, ano de equívocos, por falta de um feixe coordenador de estratégia revolucionária, do «estado de sítio» falhou-se uma revolução social?
Em Agosto deste mesmo ano, realizou-se em Évora o I Congresso dos Trabalhadores Rurais. No início, como no fim do regime da 1ª República, a grande maioria da população trabalhadora portuguesa vivia e laborava no campo. Apesar das diferenças e modos de vida entre o Norte e o Sul, o traço comum era o baixo nível dos rendimentos extraídos através do trabalho da terra, bem como o elevado número de assalariados rurais cujo único vínculo à terra era o trabalho de sol a sol para uma subsistência precária, sem direitos alguns.
O I Congresso dos Trabalhadores Rurais em Évora marcava, portanto, um estado de consciência social superior e “vinha dizer” ao Poder e ao Kapitalque os assalariados tinham organização sindical, capaz de lutar e vencer!
Este Congresso, donde saiu, também, a fundação do jornal O Trabalhador Rural, órgão da Federação Nacional dos Trabalhadores Rurais, avaliou os acontecimentos de Janeiro, reivindicou aumento de salários, restrição da área de intervenção das máquinas agrícolas, relação entre salário e custo de vida. O Congresso, de que se comemora o centenário, onde estiveram presentes 39 Associações de Classe locais, contribuiu para enquadrar as greves agrícolas durante a vigência da República dos “doutores”, e abriu caminho para continuar a luta organizada contra o regime da ditadura.
1ª página e índice da revista História de 1982.
* Este artigo foi resultado de trabalho de investigação e interpretação em 1982 e, como tal, publicado na extinta revista História, nº 39, de Janeiro de 1982, portanto, há 30 anos. Depois desta data, alguns investigadores publicaram trabalhos abordando o mesmo tema e período histórico, mas “fazendo de conta” desconhecer a síntese interpretativa já publicada, pela 1ª vez em 1982, passando adiante, talvez convencidos e arrogantes. Enfim, o costume!… O que se púbica agora, ligeiramente modificado e mais sintetizado, atendendo ao seu suporte de divulgação, obedece no essencial ao texto original.
(1) – José António Saraiva, in Diário de Notícias de 16/10/1979, A Galeria do Século – A GNR: « […] Em janeiro de 1912, por exemplo, vêem-se os chefes de Divisão da Guarda incorporar-se numa manifestação anticlerical.».
(2) – Vd. Carlos da Fonseca, in História do Movimento Operário, ed., Lisboa, s/d, fala-nos em mais de 10 mil grevistas; Alexandre Vieira, in Em volta da minha profissão, edição de autor, Lisboa, 1950, fala-nos em cerca de 20 mil grevistas na região de Évora.
(3) – Pela síntese da sua biografia, podemos verificar, pois, quanto a sua deslocação a Évora foi pouco fiável em termos de imparcialidade.
Inocêncio Joaquim Camacho Rodrigues (n. Moura, 1867-m. Lisboa, 1937) : Fez o curso de Física na antiga Escola Politécnica de Lisboa, empregando depois no mesmo estabelecimento de ensino público. Filho de famílias abastadas, foi concecionário exclusivo das águas minero-medicinais «Monte Brazão». Destacou-se como um dos republicanos que proclamou o novo regime da varanda da Câmara Municipal de Lisboa, em 1910. Foi 1º director da Fazenda Pública da República, bem como o 1º governador do Banco de Portugal, nomeado pelo governo do regime republicano. Foi eleito por Évora para as Constituintes de 1911, iniciando-se no Parlamento a 19 de Junho do mesmo ano. Desempenhou um papel negativo na agitação e greve geral dos trabalhadores agrícolas de Évora em 1912. Segundo o periódico O Sindicalista (21/1/1912), a resposta das autoridades à solicitação dos trabalhadores, para que obrigassem os latifundiários a cumprir a tabela salarial, saldou-se por uma repressão escusada. Inocêncio Camacho foi enviado pelo governo central a Évora (afinal ele era deputado por esta cidade!), com o objectivo de averiguar o que se estava a passar, pois o governador civil utilizara forças do Exército para refrear a concentração pacífica dos trabalhadores na cidade. Inocêncio Camacho demonstrou-se tão desastrado como o governo de Lisboa e como o governador civil de Évora ou, se quisermos, colocou-se francamente ao lado dos latifundiários que, de resto, eram monárquicos, em vez de arbitrar a questão. O efeito da sua actividade em Évora foi posteriormente relatado pelo ex-ministro António Maria da Silva: «Quanto ao que acabo de referir foi relatado ao Governo pelo seu Delegado Inocêncio Camacho, que também se viera queixar dos trabalhadores rurais, isto é, daqueles que, pela sua mais que exígua educação e conhecimentos, menor responsabilidade se lhes podia assacar, quando ela cabia em grande parte à autoridade concelhia», (in O Meu Depoimento, da Proclamação da República à primeira guerra mundial, 1914-1918, edição de Lisboa, s/d.). Hoje acredita-se que a questão do rebaixamento dos salários agrícolas pelos agrários, não passou de uma tentativa provocatória dos monárquicos de Évora, de forma a criarem dificuldades suplementares ao novo regime com o movimento operário organizado… E os “doutores” da República caíram no logro, ou “apreciaram” o pretexto para experimentarem, uma vez no Poder, as armas da repressão sobre o mundo do trabalho!
Não nos parece ter deixado gratas recordações na cidade, este 1ºdeputado às Constituintes. Foi ainda ministro das Finanças, tendo colaboração dispersa nos jornais A Luta (dirigido pelo Dr. Brito Camacho) e A Pátria. Permaneceu no Banco de Portugal mesmo após instaurada a ditadura (1926), até ao ano de 1936.
retirado daqui:
http://maisevora.blogspot.pt/2012/09/ha-100-anos-o-proletariado-agricola-de.html
http://maisevora.blogspot.pt/2012/09/ii.html
http://maisevora.blogspot.pt/2012/09/iii.html