Bolívia: entrevista a Mujeres Creando (colectivo anarquista/feminista)


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Julieta Ojeda integra “Mujeres Creando”, uma organização feminista/anarquista na Bolívia que tem sido uma voz radical dos direitos das mulheres antes e durante o mandato de Evo Morales na Presidência do país. Entrevistámo-la na “Virgem dos Desejos”, o espaço cultural de “Mujeres Creando”, em La Paz, em Maio de 2012, num momento de diversas mobilizações sociais contra o Movimento para o Socialismo (MAS, o partido do governo). Entre as mais destacadas dessas mobilizações esteve uma greve de médicos e profissionais da saúde em protesto pelo aumento da duração do horário de trabalho. Outra teve a ver com o projecto de uma estrada que passava através do Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Sécure (TIPNIS), uma reserva natural protegida e lugar de comunidades indígenas nas terras baixas do país. (O projecto da estrada e a sua construção foram temporariamente suspensas em Abril de 2013).

Benjamin Dangl & April Howard

– BD & AH – Que significam os conflitos actuais no vosso país, em particular no que se refere ao TIPNIS, como expressão da política do governo do MAS relativamente aos povos indígenas?

Julieta Ojeda: Em princípio Evo [Morales] é um símbolo, enquanto indígena que chegou ao poder e assumiu o poderoso papel de presidente. Pelo facto de ser um indígena assume-se que defenderá os indígenas. Mas a relação que assumiu com as trinta e quatro nacionalidades indígenas diferentes que habitam a Bolívia revelam que ele não é um homem que se identifique com esta imagem. Dizem que é indígena, não? E, sim, é-o, mas identifica-se principalmente com os cocaleros [agricultores de coca]. Nesse sentido não é indígena, mas sim cocalero, e ele responmde a esse sector. E há outra questão. Sob o governo do MAS há indígenas de primeira e autóctones de segunda classe. Outra questão é o aymara-centrismo, já que os povos indígenas que têm algum valor para este governo são os que estão no oeste, não os outros, os das terras baixas.

Tornou-se evidente para nós que Evo não vai ser um homem que respeite a natureza, ou seja, que respeite a “Pachamama” [Mãe Terra], como tinha prometido no seu discurso. O seu governo tem um projecto desenvolvimentista, um mau projecto desenvolvimentista, pode-se dizer, uma vez que os povos indígenas das terras baixas têm as suas próprias formas de exploração racional e de gestão sustentável dos seus recursos. Têm uma visão de desenvolvimento, mas um desenvolvimento que não destrói a natureza. E o governo de Evo Morales tem outra visão completamente distinta.

– BD & AH –  O que está a fazer o MAS para cooptar os movimentos sociais de forma a manter e a estender o seu próprio poder político?

Julieta Ojeda: O MAS entrou em certas organizações e dividiu-as. Entram nestes espaços do movimento social e criam divisões constituindo as suas próprias organizações paralelas. Esta tem sido uma prática comum que o poder sempre utiliza contra os movimentos sociais ou os grupo que se lhe opõem, não foi inventada pelo MAS. A diferença que existe agora é que quem está no governo também ocupa outros espaços no cenário político. Já não são um movimento social, mas continuam a funcionar como um sindicato ou um movimento para poderem continuar a infiltrar-se nas organizações para as dividirem.

Por exemplo, as divisões criadas no movimento indígena das terras baixas foram provocados pelo MAS. Fizeram-no depois da oitava marcha contra a estrada através do TIPNIS. Até então a unidade tinha existido, obviamente com desacordos e tudo o mais, mas tinha-se optado por deixar de lado as diferenças para mostrar unidade. Mas depois da oitava marcha, o MAS começou a cooptar os líderes e as comunidades no seio das organizações das terras baixas.

É também assim que fazem com outros conflitos sociais, como o recente com o sector médico, quando assinaram um acordo co os administradores da saúde, mas não com os próprios médicos. Por isso, se converteu numa luta longa, já com pelo menos dois meses de conflito. Assinam um acordo com um  grupo, e não com outro, como aconteceu com os mineiros; e é isso que fazem também nos conflitos regionais, criando facções opostas às que impulsionam as mobilizações. De forma que está é uma prática permanente do MAS para gerar grupos paralelos e opô-los aos activistas.

– BD & AH –  No actual quadro político, como vê o papel de “Mujeres Creando” e o impacto do vosso trabalho?

Julieta Ojeda: Conseguimos consolidar espaços como esta própria casa e também um certo grau de legitimidade social e de relevância política. Quer isto dizer que “Mujeres Creando” tem um lugar e um espaço dentro da sociedade, o que deve ser entendido de modo relativo, já que isso acontece para algumas coisas e para outras não. Para além disso, temos tido sempre um espaço na rádio e também temos sido presistentes no nosso projecto político.

Temos também tomado uma posição pública face às políticas de Evo Morales, como no caso do TIPNIS e da oitava marcha, à qual nos unimos e apoiámos com todos os nossos recursos. Deste modo, temos sido muito críticos de alguns dirigentes e na defesa deste território contra o projecto de estrada que o atravessaria, porque isso é brincar com o futuro.

Criticámos também o machismo do presidente em várias ocasiões, assim como o machismo do governo nas suas diferentes manifestações. Por exemplo, as tentativas de organizar o concurso de Miss Universo na Bolívia. E fazemos tudo isto não através de escritos, mas sim de acções públicas.

Estamos a tentar provocar um debate mais aberto e mais amplo sobre o tema do aborto. A Igreja opõe-se e sacou de todas as suas armas para conseguir cancelar esta discussão. Neste caso o governo de Evo Morales foi muito tíbio. Este é um governo muito conservador quanto aos direitos dos homossexuais e ao aborto ou a qualquer coisa que tenha a ver com as mulheres ou com o direito das mulheres. Falam do que fizeram, como o subsídio para as mães, mas tem que ser-se mãe para o conseguir, o que mais uma vez reforça a ideia de que as mulheres só têm valor quando são mães.

Na realidade, este governo não nos vê como um inimigo, mas sim como uma pequena pedra no sapato, uma irritação constante. Mas tão pouco decidiram fazer alguma coisa contra nós, porque quando o governo decide que alguém é um inimigo é terrivelmente vingativo, como o têm sido com os dissidentes que tratam de enterrar politicamente. Mas situamo-nos no papel que descrevi, embora não nos limitemos a ser exclusivamente um adversário das políticas oficiais já que temos o nosso próprio projecto político, e isso é apenas uma parte do que fazemos.

[Esta entrevista foi originalmente publicada em inglês em http://upsidedownworld.org/main/bolivia-archives-31/4600-the-government-and-the-street-in-bolivia-an-interview-with-julieta-ojeda-of-mujeres-creando, e integra um livro que deverá ser publicado proximamente intitulado “Until the Rulers Obey: Voices from Latin American Social Movements”. A tradução actual em português foi feita a partir da versão em castelhano publicada por El Libertario.]

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