Os Estados Unidos da Europa, por Mikhail Bakunin


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Num momento em que volta a estar aceso o debate em torno das soluções para a Europa, que oscilam entre a implosão e o Federalismo, torna-se interessante este texto de Mikhail Bakunin, escrito há quase 150 anos, em que o anarquista russo defende a criação dos Estados Unidos da Europa, constituídos pela Federação dos vários países, livres da monarquia, como um garante para a paz. É um texto datado, mas que reflecte a opção anarquista pelo federalismo sempre que se trate de criar organizações complexas, a partir de estruturas mais simples. Esta é uma opção que ainda hoje está bem clara nos movimentos anarquistas: só a Federação se pode opor ao centralismo, garantindo a igualdade entre as partes constituintes. Sobre este texto, com a iminência de uma guerra entre a Prússia e França reuniu-se em Berna (Suiça), em 1868, o Congresso da Liga da Paz e da Liberdade.  O Congresso juntou grandes personalidades liberais e republicanas como Garibaldi, Stuart Mill e Herzen. Bakunin  intervém neste Congresso e ali apresenta uma comunicação que estará na base da sua obra “Federalismo, Socialismo, Antiteologismo”.  Sem nutrir qualquer ilusão com as decisões do Congresso, Bakunin atuou no seio do republicanismo com o objectivo de clarificar as diversas posições e demonstrar as suas contradições aos olhos dos sectores mais radicais, levando-os a aderirem à organização anarquista que criara (a Fraternidade Revolucionária).  Depois deste congresso, Bakunin e outros revolucionários rompem com a Liga da Paz e da Liberdade e passam a construir a Associação Internacional dos Trabalhadores. Os excertos que publicamos integram o livro “Federalismo, Socialismo, Antiteologismo”  que, segundo as informações publicadas nas actas e resoluções,  representa um desenvolvimento do discurso pronunciado por Bakunin neste Congresso. Neles se aborda a constituição dos Estados Unidos da Europa, baseados no federalismo, e a actualidade da luta de classes na construção de uma nova Europa.

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Os Estados Unidos da Europa

Mikhail Bakunin

Em conformidade com o sentimento unânime do Congresso de Genebra, devemos proclamar:

1º) Que para fazer triunfar a liberdade, a justiça e a paz nas relações internacionais da Europa, para tornar impossível a guerra civil entre os diferentes povos que compõem a família europeia, só há um meio: constituir os Estados Unidos da Europa.

2º) Que os Estados Unidos da Europa jamais se poderão formar com os Estados tais como são hoje constituídos, dada a desigualdade monstruosa que existe entre as suas forças respectivas.

3º) Que o exemplo da falecida Confederação germânica provou de um modo peremptório que uma confederação de monarquias é um escárnio; que ela é impotente para garantir seja a paz seja a liberdade das populações.

4º) Que nenhum Estado centralizado, burocrático e consequentemente militar, ainda que se chame república, poderá entrar séria e sinceramente numa confederação internacional. Pela sua própria constituição, que é sempre uma negação aberta ou mascarada da liberdade no seu interior, ele seria necessariamente uma declaração de guerra permanente, uma ameaça contra a existência dos países vizinhos. Fundado essencialmente sobre um ato que ocorre após a violência, a conquista, o que na vida privada se chama de roubo com arrombamento, acto abençoado pela Igreja de uma religião qualquer, consagrado pelo tempo e por isso mesmo transformado em direito histórico, e apoiando-se sobre esta divina glorificação da violência triunfante como sobre um direito exclusivo e supremo, cada Estado centralista constitui uma negação absoluta do direito de todos os outros Estados, jamais lhes reconhecendo, nos tratados que com eles conclui, senão um interesse político ou de impotência.

5º) Que todos os aderentes da Liga devem, por consequência, esforçarem-se para reconstituirem os seus países de origem, a fim de neles substituirem a antiga organização, de cima para baixo, fundada sobre a violência e sobre o princípio da autoridade, por uma organização nova, tendo por base somente os interesses, as necessidades e os desejos naturais das populações, e por princípio somente a federação livre dos indivíduos nos concelhos (comunas), das comunas nas províncias, das províncias nas nações, e, finalmente, destas nos Estados Unidos da Europa inicialmente, e mais tarde no mundo inteiro.

6º) Consequentemente, abandono absoluto de tudo a que se chama direito histórico dos Estados, todas as questões relativas às fronteiras naturais, políticas, estratégicas, comerciais, deverão ser consideradas doravante como pertencentes à história antiga e rejeitadas com energia por todos os aderentes da Liga.

7º) Reconhecimento do direito absoluto de cada nação, grande ou pequena, de cada povo, fraco ou forte, de cada província, de cada comuna, a uma completa autonomia, desde que sua constituição interior não seja uma ameaça e um perigo para a autonomia e para a liberdade dos países vizinhos.

8º) No caso de um país ter feito parte de um Estado, ainda que se tivesse juntado livremente, não implica para ele obrigação de permanecer sempre ligado a este Estado. Nenhuma obrigação perpétua pode ser aceite pela justiça humana, a única que pode servir como autoridade entre nós, e não reconheceremos jamais outros direitos, nem outros deveres, além daqueles que se fundam sobre a liberdade. O direito da livre reunião e da secessão igualmente livre é o primeiro, o mais importante de todos os direitos políticos; aquele sem o qual a confederação não seria outra coisa senão uma centralização mascarada.

9º) Resulta, de tudo o que precede, que a Liga deve francamente proscrever qualquer aliança de tal ou qual fração nacional da democracia europeia com os Estados monárquicos, mesmo quando esta aliança tiver por objetivo reconquistar a independência ou a liberdade de um país oprimido,  tal aliança, podendo conduzir somente a decepções, seria ao mesmo tempo uma traição à revolução.

10º) Todavia, a Liga, precisamente porque é a Liga da Paz e porque está convencida de que a paz só poderá ser conquistada e fundada sobre a mais íntima e completa solidariedade dos povos na justiça e na liberdade, deve proclamar de viva voz as suas simpatias por qualquer  insurreição nacional contra a opressão, seja estrangeira, seja interna, desde que esta insurreição se faça em nome dos nossos princípios e no interesse, tanto político quanto económico, das massas populares, mas não com a intenção ambiciosa de fundar um Estado poderoso.

11º) A Liga fará guerra total a tudo o que se chama glória, grandeza e poderio dos Estados. A todos estes falsos e malfazejos ídolos, aos quais foram imoladas milhões de vítimas humanas, oporemos as glórias da inteligência humana que se manifestam na ciência e de uma prosperidade universal fundada sobre o trabalho, a justiça e a liberdade.

12º) A Liga reconhecerá a nacionalidade como um facto natural; tendo incontestavelmente direito a uma existência e a um desenvolvimento livres, mas não como um princípio, porque a noção de princípio assenta num carácter de universalidade e a nacionalidade é, pelo contrário,  algo de  exclusivo,  de distinto. Este pretenso princípio de nacionalidade, tal como foi formulado nos nossos dias pelos governos da França, da Rússia e da Prússia, e até mesmo por muitos patriotas alemães, polacos, italianos e húngaros, nada mais é do que uma deriva encontrada pela reacção para se opor ao espírito da revolução: no fundo, é algo eminentemente aristocrático, a ponto de desprezar os dialectos das populações não letradas, negando implicitamente a liberdade das províncias e a autonomia real das comunas, e apoiado em todos os países não pelas massas populares, às quais ele sacrifica sistematicamente os interesses reais a um, assim dito, bem público, que não é outro senão o das classes privilegiadas. Este princípio nada mais exprime que os pretensos direitos históricos e a ambição dos Estados. O direito de nacionalidade nunca poderá ser considerado pela Liga a não ser como consequência natural do princípio supremo da liberdade, deixando de ser um direito no momento em que se coloca quer contra a liberdade, quer simplesmente fora da liberdade.

13º) A unidade é o objectivo para o qual tende irresistivelmente a humanidade. Mas ela torna-se um factor de morte, destruidora da inteligência, da dignidade, da prosperidade dos indivíduos e dos povos, sempre que se constitui fora da liberdade, seja pela violência, seja sob a autoridade de uma qualquer ideia teológica, metafísica, política, ou mesmo económica. O patriotismo, que tende para a unidade fora da liberdade, é algo de mau, sempre funesto aos interesses populares e reais do país que pretende exaltar e servir e, frequentemente, mesmo sem o desejar, amigo da reacção, inimigo da revolução, isto é, da emancipação das nações e dos homens. A Liga só poderá reconhecer uma única unidade: aquela que se constituirá livremente pela federação das partes autónomas no conjunto, de forma a que este, deixando de ser a negação dos direitos e dos interesses particulares, deixando de ser o cemitério onde se enterram forçosamente todas as possibilidades locais, se torne, ao contrário, a confirmação e a fonte de todas estas autonomias e de todas estas possibilidades. A Liga atacará, pois, vigorosamente qualquer organização religiosa, política, económica e social que não esteja imbuída por este grande princípio da liberdade: sem ele não há inteligência, justiça, prosperidade, humanidade.

federal

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