O ressurgimento do movimento libertário, que está hoje no centro e no coração da maioria dos movimentos sociais através das formas organizativas (assembleias, horizontalidade, igualdade, crítica das hierarquias e da representação) e dos instrumentos de luta (acção directa, apoio mútuo, solidariedade efectiva), tem tido também um paralelismo evidente ao nível teórico e mais académico. O anarquismo, que tinha estado quase sempre arredado do meio intelectual, forçou as portas da Universidade e dos gabinetes de investigação e é hoje objecto de estudo, de discussão, de seminários e de artigos em revistas de filosofia, antropologia, sociologia, etc., etc.. Do mesmo modo, nos últimos anos, tem surgido um grande número de novos autores, em geral investigadores comprometidos com a prática libertária, que têm aberto novas janelas de debate e discussão, renovando e dando actualidade ao pensamento libertário. O Portal Anarquista tem tentado dar voz, dentro das nossas possibilidades, a estes novos (ou menos novos) autores, traduzindo textos e divulgando-os. Carlos Taibo, David Graeber, Tomas Ibañez, Gabriel Kuhn, Octavio Alberola, etc., têm sido alguns dos autores, nossos contemporâneos, divulgados nesta página. Neste sentido, publicamos agora a tradução de uma entrevista que o filósofo e historiador anarquista Daniel Colson deu à revista francesa Ballast, em Fevereiro de 2015 e cuja versão (reduzida) em castelhano foi publicada há dias pelos jornal espanhol “el diário”. Uma entrevista interessante, que define bem o campo do anarquismo face às ideologias estatistas e de carácter autoritário, e em que Daniel Colson, citando Deleuze e Guatarri define Anarquia como “uma estranha unidade que apenas se diz do múltiplo”
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Propões a ideia de que o anarquismo não é apenas um modo de viver, nem um estado de alma, mas sim uma verdadeira ontologia. Que queres dizer com isto?
Falar de ontologia é falar do que é, do que há, das coisas, dos factos – a dominação por exemplo, a hierarquia, a exploração, a opressão, a tristeza (para nos situarmos apenas nos factos negativos – mas é verdade que há muitos mais). Ao contrário do que se pensa frequentemente (alguns libertários também o fazem), o anarquismo não é um ideal ou uma utopia, ou “belas ideias” que todos os dias se constataria que são irrealizáveis. O anarquismo é extremamente realista. Fala das coisas tal e qual elas são: o caos, os acidentes, a vida e a morte, a alegria, mas também a tristeza e o sofrimento, o stress, as relações de força e de poder, o acaso e a necessidade, tanto da existência humana como do mundo e do universo que são os nossos. Em síntese, a “anarquia” do que existe. O idealismo e a utopia não estão do lado do anarquismo, mas sim do lado da ordem, das aparências e dos formatos da coerção e da dominação. O idealismo e a utopia estão do lado das “leis”, das “religiões”, dos “Estados” e dos sistemas (incluindo os científicos) que pretendem pôr ordem e dar sentido ao caos, vergá-lo à sua lógica particular, à custa de muitos sofrimentos, negações, violências e obrigações – ao mesmo tempo que estas leis, estas religiões, estes Estados e estes sistemas em luta feroz pela hegemonia das suas mentiras e das suas vontades são eles próprios o sinal mais visível (mas também evidente) do que é que pretendem combater e vergar às suas leis particulares.