Um Militante Libertário – Moisés Silva Ramos, personagem sabiamente polémico


moisés

Fotografia de Lígia de Oliveira: Moisés da Silva Ramos (à esquerda) e Manuel Gomes de Matos no Colóquio Internacional de Estudos ‘Tecnologia e Liberdade’, realizado em 1987 em Belém. (aqui)

(Texto da autoria de José Hipólito Santos e lido no passado dia 14 de Dezembro no espaço Grandella, em Lisboa, aquando da apresentação do número duplo 71/72 da revista de expressão libertária “A IDEIA”)

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Um dever de memória continua a estimular-me a rebuscar nas minhas memórias para escrever/falar sobre pessoas, quase sempre, esquecidas e que tiveram uma vida de dedicação a uma causa para além de si. Esse é o caso de Moisés que procurei abordar escrevendo sobre ele, a partir de ângulos diversos: a pessoa, o engenheiro, o empresário, o cooperativista, o anarquista, oposicionista a um regime de ditadura. A sua vivência libertária é bem visível no seu todo e em cada aspecto tratado.

1 – A pessoa

Moisés Silva Ramos deixou-nos em 21 de Outubro de 2000, depois de ter passado 80 anos entre nós, viventes ! 80 ou 82 anos ?[1]

Ele gostou sempre de esconder a sua idade, fazendo-se parecer mais velho ou mais novo conforme as circunstâncias…

Quando o conheci em 1955, ele era para mim o mais novo daquela plêiade de «velhos» anarquistas e ex-comunistas do Ateneu Cooperativo – Emídio Santana, Germinal de Sousa, Acácio Tomás de Aquino, José de Sousa, Vasco de Carvalho. A diferença de idades entre mim e ele seria apenas de 12 ou 14 anos, ele teria 35 ou 37, um jovem, mas para mim era um velho; falava a linguagem daqueles velhos, contava histórias dum passado que me eram completamente estranhas, parecendo vir de épocas imemoriais.

Quase sempre bem-disposto, de risada fácil e contagiante, gostava de contar histórias engraçadas (mas não era homem de anedotas) e adorava a ironia e conversas de duplo sentido.

Educado por um pai anarquista, fez a sua instrução escolar na Escola Oficina, (no Largo da Graça) muito influenciada por um “modelo educativo libertário” com uma pedagogia do tipo Escola Moderna – uma educação integral, juntando os aspectos técnicos, científicos, literários, artísticos.

Era claramente um homem culto, um leitor compulsivo de livros de história politica e social, de crítica social, de literatura, de ciências físicas e da natureza, de livros policiais e de ficção científica, mas também tinha uma apreciável colecção de literatura técnica relativa às áreas em que trabalhava.

O saber implicava conhecer os vários ângulos duma questão importante – por exemplo, a Revolução Francesa, a Revolução Russa, a Guerra de Espanha, o nazismo, o comunismo soviético.

Era uma leitura/cultura onde entravam autores significativos e portadores duma reflexão profunda, ainda que ideologicamente se pudessem situar em posições muito diferentes da sua – Pietro Neni, Ernest Mandel, Isaac Deutcher, Arthur Koestler, Herbert George. Welles, André Gorz, René Dumont, Camus e Jean Paul Sartre, Ferreira de Castro, Mário Dionísio, José Saramago, Aquilino Ribeiro, Soeiro Pereira Gomes.

E era um leitor assíduo e critico das obras de António Sérgio.

Era uma biblioteca riquíssima constituída de obras em português e francês ou ainda em castelhano, desde os anos 30 do século passado – livros da editora COSMOS, livros e revistas sobre cooperativismo e autogestão ou sobre os kibutz que se instalavam na Palestina, mas também obras posteriores sobre a revolução cubana ou a autogestão jugoslava.

Onde foi parar essa biblioteca cheia de preciosidades ? E a documentação que tão zelosamente guardava ?

A viúva decidiu entregar-me a documentação para eu classificar, ver o que era do foro pessoal e a guardar pela família e o que seria de ordem politica, que, depois doaria à Biblioteca Nacional. Mas essa entrega nunca se fez e, um dia, anunciou-me que tudo fora destruído por uma ruptura na canalização dos esgotos !

Entretanto, na pesquisa para esta comunicação, fui surpreendido por uma referência no site de Pacheco Pereira do seguinte teor :

Entraram, por aquisição, mais livros do espólio de Moisés da Silva Ramos tendo também conseguido alguns papéis relativos ao Ateneu Cooperativo e à Associação de Inquilinos Lisbonenses (…. ) E depois acrescentavaTêm aparecido no mercado de livros e velharias um conjunto de papéis, documentos, revistas,   jornais e livros, com origem no espólio do anarquista e cooperativista Moisés da Silva Ramos, falecido em 2000. O espólio fragmentou-se e parece estar disperso em várias mãos, quer de vendedores, quer de compradores.

É com profunda tristeza que relato aqui este episódio! Ele não merecia isso!

Moisés, foi um frequentador, no final dos anos 30, da Universidade Popular Portuguesa, que funcionava na cooperativa A Padaria do Povo, em Campo d’Ourique. E, mais tarde, nos anos 90, fez parte dum grupo, Zé Maria Carvalho Ferreira, Madeira Luís, José Luís Félix e eu próprio, para relançar no mesmo local uma nova Universidade Popular, o que não conseguimos.

Era um racionalista, suportava mal discussões que saíssem desse campo. Teve alguma dificuldade em integrar-se na cooperativa SEIES, bem mais tarde, porque aí se tomava em consideração factores não estritamente racionais, mesmo quando se estava num campo eminentemente técnico. “Psicologisava-se” muito, como dizia.

Discreto, praticava um certo requinte, quase burguês, no vestir e no comer… embora andasse frequentemente sem dinheiro, ou quase, reflectindo as suas dificuldades em gerir os negócios…

Sempre dependurado no seu cachimbo, nunca bebia água para não enferrujar o estômago, segundo dizia, só cerveja!

Teve um ou mais carros, em enésima mão, com contínuos problemas mecânicos e falta de gasolina… Abastecia o depósito com o mesmo valor e não se dava conta de que entretanto o preço do combustível tinha aumentado.

O espírito de abertura crítica e de solidariedade que o caracterizavam levaram-no, já nos anos 80, a dar apoio pessoal a um activista responsável das FP25, na clandestinidade, permitindo-lhe um estágio profissional na Tecnicalor. E estava bem consciente dos riscos que então corria! E isso apesar de reprovar a radicalidade dessa organização.

2 O engenheiro 

Era engenheiro especialista em termodinâmica, projectando e montando sistemas de ar condicionado, já com grandes preocupações ecológicas a nível de utilização de painéis solares, e de desperdícios de madeiras para sistemas de secagem de madeiras e até de produção de biomassa como fonte energética e reutilização na agricultura.

A sua curiosidade e procura de informação fazia com que estivesse sempre a par do que de mais avançado se ia fazendo pelo mundo, nomeadamente em países a querer sair do subdesenvolvimento sem passar por soluções industriais clássicas – a Índia, a China e Israel eram referências importantes nas suas pesquisas.

Foi assim que, já em colaboração estreita com a SEIES, preparou um plano de secagem de madeiras para a indústria de mobiliário de Moçambique e também um plano de instalação de alguns dispositivos de produção de biogás para o desenvolvimento rural e cooperativo desse país. Chegou a deslocar-se ali, as suas propostas foram bem aceites, a SEIES teve um contrato assinado para o biogás, mas…os conselheiros búlgaros e da RDA rejeitaram a sua aplicação – nos seus países avançadíssimos não se consideravam sérias tais tecnologias simplistas.

3 – O empresário

Desde que o conheci e a nossa relação começou a sair do âmbito cooperativo, fazíamos encontros na Rua Sousa Martins (mais tarde na Av. Almirante Reis) onde estava a sua empresa, a Tecnicalor, que criara com Eurico Costa como desenhador.

Mas o Moisés e o Eurico não eram vocacionados para o negócio !

Não só as relações com as instituições públicas – finanças, segurança social, licenças camarárias, Direcção Geral das Industrias – eram descuradas, pondo-os sempre em situações complicadas de coimas, penhoras, etc., mas também com os próprios clientes, facilitando na contratação que muitas vezes era apenas verbal e se voltava sempre contra eles.

Tinha uma grande paixão pela inovação, mas as numerosas invenções e aperfeiçoamentos que ia fazendo não eram registados pelo que eram copiadas, desenvolvidas e comercializadas por outros…

Interessante referir que durante bastantes anos teve dois clientes inabituais – os conventos das “carmelitas”, no Alentejo e em Carcavelos/Cascais, onde instalou sistemas de ar condicionado e de aquecimento de águas, com base em painéis solares. Ele gostava de falar disso, naqueles conventos, fechados aos homens, só ele podia entrar!

Apesar duma grande aparência de organização burocrática, quando um novo projecto comercial se iniciava abria dossiers com os vários itens que a sua gestão requeria, mas depois não tinha paciência para guardar devidamente os papéis nos sítios adequados !

4 – O cooperativista

Antes do trabalho de Emídio Santana, em 1955, para convencer velhos anarquistas a aderir ao Ateneu Cooperativo,  sendo que a posição ideológica anarcossindicalista, nos anos 30 e 40, fosse de rejeição do reformismo cooperativista, Moisés conhecera a sua história e a forma como era praticado em alguns países. Numa lista de livros adquiridos por Pacheco Pereira encontram-se revistas sobre as cooperativas operárias em França, livros de Waldiqui Moura, um activista e historiador do cooperativismo brasileiro, ou os kibutz israelitas, entre outros. E no início de 1954, defendia, no Boletim da Associação dos Inquilinos Lisbonenses a necessidade de se criar um centro de estudos cooperativos.

Em finais de 1956, torna-se no primeiro presidente da direcção do Ateneu Cooperativo (aliás ainda com o nome de Fraternidade Operária de Lisboa). Nessa qualidade participa na Reunião Magna das Cooperativas (1956), que juntou dezenas de cooperativas de todo o país e decidiu criar a Unicoope, com uma actividade essencialmente económica de abastecimento, visando alargar a cooperação concreta entre as cooperativas, ponto de partida indispensável para se avançar para uma federação.

Apoiante do Boletim Cooperativista, não deixou de criar um boletim Cooperação interno ao Ateneu, procurando fazer dele uma revista, com informação sobre o que se ia fazendo no mundo, e teórico-doutrinária do Movimento Cooperativo e a reflexão que se fazia no Ateneu sobre tudo isso e propostas de acção consequentes. Por seu lado, o Boletim Cooperativista, controlado pelo PCP, através de militantes seus e de «companheiros de caminho » dava escassas e deformadas informações do que se ia passando ou de perspectivas dum futuro muito pouco estimulante.

Moisés tornou-se colaborador da Associação dos Inquilinos Lisbonenses, pelo menos desde 1950, com vários artigos sobre cooperativismo no seu Boletim Habitação. É apoiante dum grande projecto de cooperativa de transportes em Lisboa – a Auto-Mecânica de Portugal, a que a AIL aderira desde a sua fundação em 1937 e que atraíra grande apoio popular e, assim, juntara um capital para encomendar 100 autocarros. Iniciativa contrariada naturalmente pela Carris e pelo regime, acabando por ser impedida de funcionamento, no início dos anos 50.

Eleito presidente da AIL em 1957, levou a cabo uma Exposição Habitacional no Mundo, fruto de uma grande colaboração com os jovens arquitectos Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas. A Exposição teve grande projecção atraindo 10 000 visitantes (na época, um grande acontecimento) ao Salão das Belas Artes e, no ano seguinte, igual sucesso no Porto. A Exposição foi pretexto para preparar propostas de alojamento cooperativo que a própria AIL pretendia concretizar, propostas trabalhadas com aqueles arquitectos e jovens economistas como José Silva Lopes ou Eugénio Mota. Facilidades de obtenção de empréstimo bancário e de acesso a terrenos de custo moderado para a sua realização foram evidentemente recusadas.

Foi novamente presidente da AIL no triénio 1962/64 e manteve sempre uma colaboração próxima com as sucessivas direcções.

Depois do 25 de Abril acompanhou de forma crítica a orientação que eu dei à acção da AIL, com um apoio estreito às comissões de moradores e às ocupações de casas devolutas. Temia muito a  eventualidade de o PCP tomar o poder no país, e via as comissões de moradores controladas por elementos comunistas enquanto as ocupações seriam obra de oportunistas…

EM 1958, António Sérgio incentivado por Orlando Costa, lançou a produção do livro « O Cooperativismo, Objectivos e Modalidades », uma obra colectiva, publicada em fascículos, de que Moisés foi um dos co-autores, escrevendo um magnífico capítulo sobre o Cooperativismo Habitacional.

Ainda no âmbito cooperativo, e já depois do 25 de Abril, em 1980, sob minha iniciativa foi criada uma cooperativa de trabalhadores, a SEIES, virada para o estudo e intervenção sócio-económica local. Funcionava em autogestão dos associados, com levantamentos/salários iguais, práticas ainda seguidas 33 anos depois.

Moisés não integrou o grupo fundador mas rapidamente foi envolvido na preparação de projectos de secagem de madeiras para a indústria de mobiliário de Moçambique e outro de instalação de dispositivos de produção de biogás para o desenvolvimento rural e cooperativo, como já foi referido

Colaborou intensamente com a Cooperativa COCAMABE, uma experiência autogestionária com grande projecção, na indústria do mobiliário, em Valongo, sendo que os pagamentos dos serviços prestados se faziam inicialmente numa base de trocas – a SEIES fornecia apoio técnico e a Cocamabé fornecia mobiliário para a instalação da SEIES. Isso antes da chegada dos dinheiros de Bruxelas. Depois, Moisés assegurou a montagem dum sistema de secagem de madeiras.

Durante algum tempo, integrou o grupo de trabalho que, na SEIES, acompanhava o seu representante na direcção da Federação das Cooperativas de Serviços. Esta preferiu lançar-se num vasto trabalho de marketing, apoiado por universitários partidários “duma gestão moderna ao serviço dos trabalhadores”… e rapidamente foi tomada pela febre dos dinheiros. A proclamação de grandes sucessos não convencia a SEIES, que depois de grandes discussões internas, decidiu abandonar a direcção federativa denunciando práticas dum mero capitalismo anti-cooperativo. Autênticas vigarices continuadas levaram-na à falência arrastando muitas cooperativas e deixando outras em situação difícil… Entretanto, os referidos professores tranquilamente desapareceram (um, acabo de o ver eleito como reitor do ISCTE)!

5 – O anarquista e revolucionário

Filho de Álvaro da Costa Ramos, anarcossindicalista muito activo, deportado em Angola com Mário Castelhano e que participou na preparação da greve insurreccional de 18 de Janeiro de 1934. Moisés falava das suas visitas ao pai, quando vivia clandestinamente num moinho perto de Odivelas, onde funcionava uma tipografia da organização.

Assim, Moisés envolveu-se muito novo no movimento anarquista, militando activamente nas Juventudes Libertárias, nos anos 30 e 40. Viveu algum tempo numa comuna em Albarraque, onde com outros companheiros procuravam refazer uma micro-comuna, um micro-kibutz, falando com entusiasmo desse tipo de experiência de vida colectiva, de judeus laicos que se instalavam na Palestina. Ali, o trabalho era igualmente distribuído por homens e mulheres, praticava-se a gestão colectiva, amor livre, crianças educadas em creches e escolas comunitárias, não havia dinheiro, nem bancos!

Tornou-se num dos mais convictos defensores do “amor livre” e da utilização de métodos contraceptivos para evitar a gravidez. Isso ia contra o moralismo e conservadorismo reinante na sociedade portuguesa. Faziam a divulgação de métodos, tanto os preservativos masculinos, como femininos. Ainda guardava em casa (onde foram parar?) alguns exemplares de pessários (diafragmas) e de fossetes, fabricados com um metal muito leve colocado na vagina. E de tudo isso falava com entusiasmo.

Entretanto, a vitória eleitoral da Frente Popular em Espanha deu uma tónica mais revolucionária às actividades das Juventudes Libertárias, com uma participação muito activa do Moisés, organizando “passeios de confraternização ideológica” em pinhais na zona de Almada e do Seixal, envolvendo muitos outros jovens anarquistas (mas também não jovens) onde se discutiam formas para travar a acção do ditador Salazar na sua ajuda a Franco. Faziam treinos na Costa da Caparica para utilização de armas e de explosivos, e também de orientação no terreno e de marcha.

Emissões duma Rádio Fantasma lançado por anarquistas portugueses envolvidos na guerra civil de Espanha e que interferia com as emissões da Rádio Club Português, a rádio portuguesa que assegurava a propaganda franquista, permitiam conhecer notícias de sucessos revolucionários, republicanos e anarquistas, que eram escondidas em Portugal.

Através de manifestos e jornais clandestinos difundiam essas notícias e denunciavam a presença de fascistas espanhóis em Portugal de onde orientavam o movimento militar falangista; por outro lado, realizavam acções de sabotagem – com incêndios, descarrilamentos de vagões e de camiões – em depósitos de munições e de combustíveis, armazéns de alimentação ou de fardas para as tropas franquistas.

Também deu apoio a fugas de barco para Marrocos, Inglaterra ou França.

Participou ainda na preparação dum plano de fuga de Emídio Santana, quando este se encontrava na Penitenciária de Lisboa.

Moisés militou activamente na defesa duma orientação confederal anarquista, que possibilitasse a criação de condições para, no fim da guerra, entrarem em alianças para derrubar o regime salazarista.

Depois do 25 de Abril, empenhou-se no relançamento de A Batalha e também na dinamização do Centro de Estudos Libertários.

6 – Homem da Oposição

O Ateneu Cooperativo permitiu o estabelecimento de relações politicas de confiança, levando ao envolvimento de um conjunto de pessoas em actividades contra o regime – casos de Moisés Silva Ramos, Emídio Santana, outros velhos anarquistas mas também de alguns jovens. Ali, no Ateneu, tive a possibilidade de contar e ser questionado sobre o meu envolvimento em actividades oposicionistas, como a Comissão Promotora do Voto ou as discussões na Seara Nova. E o Moisés era sempre muito crítico!

Mas também as relações permitiram saídas menos pacificas, como a participação nas manifestações em Santa Apolónia para esperar Humberto Delgado e que depois de uma investida policial levou o Moisés e eu próprio a tomar a cabeça da manifestação reagrupada que subiu a Rua da Prata na direcção da Avenida da Liberdade, onde fomos recebidos a tiro pela PSP.

O mesmo se passou, em 1960 na passagem dos 50 anos da República. Depois da tradicional romagem ao Cemitério do Alto de S. João, e de uma brutal carga, à espadeirada, por parte da GNR a cavalo, sobre os manifestantes pela Rua Morais Soares abaixo. Reagrupando-nos no Rossio, Moisés e eu arrancámos com uma manifestação pela Rua do Ouro até à Câmara Municipal de Lisboa. O advogado republicano Adão e Silva, com escritório naquela rua, atirou-nos uma bandeira nacional com a qual desfilámos. A PSP recebeu-nos a tiro, provocando dois feridos, quando nos aproximávamos novamente do Rossio, subindo a Rua Augusta.

Mas já antes disso, Moisés (e Emídio Santana) foram sendo informados da preparação duma tentativa revolucionária, com forte componente de gente nova não militar, aquilo que veio a ser conhecido como o Movimento da Sé.

Moisés e Emídio Santana compareceram, como combinado, no anexo da Sé a partir de onde deviam ser distribuídas armas. Comunicaram com outros elementos anarquistas preparando-se para dar seguimento à acção revolucionária que foi suspensa quando já estava em andamento.

O mesmo sucedeu aquando  da chamada Revolta de Beja, na passagem do ano de 1961 para 1962. Moisés e Emídio Santana deram a sua adesão ao que se preparava e mobilizaram outros elementos anarquistas para, uma vez tomado o quartel de Beja, fazerem o necessário para ser cortada a corrente de electricidade à cidade de Lisboa, paralisando transportes e fábricas. Entretanto, Germinal de Sousa e Correia Pires encarregavam-se da produção de panfletos de agitação, a ser distribuídos em Lisboa – Alcântara e Sacavém – e na Margem Sul.

Alguns meses antes deste envolvimento Moisés fora preso durante algumas semanas pela PIDE, metido num curro onde entrou com o cabelo preto e saiu com ele branco…

A prisão não o amedrontou, como sucedia frequentemente.

Entretanto, a minha prisão e posterior exílio teve um certo efeito desmobilizador na organização que se estava a criar a partir do Ateneu.

Pude montar um sistema de comunicação, difícil e irregular, com o Moisés. Foi assim que soube da sua adesão ao MAR – Movimento de Acção Revolucionária. Chegámos mesmo a realizar um encontro clandestino em Madrid, já numa situação de abandono progressivo do MAR, mas onde as consequências da guerra colonial e da saída massiva de jovens para a guerra e a emigração mostravam que o regime agonizava. Pudemos aí discutir um pouco sobre o que poderia ser o futuro do país com base na linha do MAR – reforma agrária, nacionalização das grandes empresas, desenvolvimento do cooperativismo, poder descentralizado assente no municipalismo.

Moisés deu alguma colaboração à revista “O Tempo e o Modo” no início de 1970, com artigos sobre a autogestão na antiga Jugoslávia e na Catalunha dos tempos anteriores à vitória franquista.

Envolveu-se depois, com Emídio Santana, na criação da Associação de Defesa dos Consumidores – DECO.

Gostando de se levantar cedo e passear pela cidade, acompanhou e participou nas movimentações populares do dia 25 de Abril de 1974, no Terreiro do Paço e depois em frente do quartel do Carmo, onde assistiu eufórico à prisão de Marcelo Caetano.

Assistiu, em directo, ao ruir dum regime contra o qual se batera ao longo da sua vida!

Oeiras, 14 de Dezembro de 2013

José Hipólito Santos [2]


[1] Nasceu em 13.10.1920, como indica João Freire, ou em 1918, como referido por outras fontes?

[2] Nasceu no Porto, em 1932. Sócio-economista, ex-dirigente cooperativista, antigo colaborador da Seara Nova e dos Cadernos de Circunstância. Membro do MUD-Juvenil, participante na Revolta da Sé e no Golpe de Beja, ex-preso político e antigo exilado em Argel, ex-dirigente do MAR, LUAR e PRP. Membro do Comité de Acção da EPHE (Sorbonne) em Maio 68. Quadro superior da CUF, presidente do Ateneu Cooperativo e da Associação dos Inquilinos Lisbonenses. Professor universitário em Paris-XIII, no ISE e no ISPA. Perito das N. U., fundador da SEIES, membro da Alliance Pour Un Monde Responsable, Pluriel et  Solidaire e DRD-Démocratiser Radicalement la Démocratie. Participante na Assembleia Mundial de Cidadãos (2001).

CEL 49 AI (1)

Sessão na sede do Centro de Estudos Libertários e jornal “A Batalha”, na Rua Marquês de Ponte de Lima, nº 37, 2º Dº, em Lisboa, realizada em data incerta (nos anos 80/90) em colaboração com a Secção Portuguesa da Amnistia Internacional, reconhecendo-se na mesa João Freire e Moisés Silva Ramos. (foto aqui)

Agradecimentos a José Hipólito Santos e António Cândido Franco (director da revista “A IDEIA”)

3 comments

  1. Um importante texto memorialístico de Hipólito Santos que nos permite conhecer um pouco mais o período mais obscuro do anarquismo em Portugal, o da ditadura pós anos 40, onde uns quantos militantes mantiveram uma actividade de oposição e resistência ao Salazarismo.

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